quinta-feira, 29 de março de 2018

Linguagem: uma guerra civil sem quartel

A constante produção de imagens e de formas verbais rítmicas é uma prova do caráter simbolizante da fala, de sua natureza poética. A linguagem tende espontaneamente a se cristalizar em metáforas. Diariamente as palavras chocam-se entre si e emitem chispas metálicas ou formam pares fosforescentes. O céu verbal se povoa se cessar de novos astros. Todos os dias afloram à superfície do idioma palavras e frases, minando ainda umidade e silêncio por entre suas frias escamas. No mesmo instante outras desaparecem. De repente, o terreno baldio de um idioma fatigado se cobre de súbitas flores verbais. Criaturas luminosas habitam as espessuras da fala, criaturas sobretudo vorazes. No seio da linguagem há uma guerra civil sem quartel. Todos contra um. Um contra todos. Enorme massa sempre em movimento, engendrando-se sem cessar, ébria de si! Nos lábios das crianças, dos loucos, dos sábios, dos idiotas, dos namorados ou dos solitários, brotam imagens, jogos de palavras, expressões surgidas do nada. Por um instante brilham ou lampejam. Depois se apagam. feitas de matéria inflamada, as palavras se incendeiam mal roçadas pela imaginação ou pela fantasia. Mas são incapazes de conservar seu fogo. a fala é a substância ou alimento do poema; não é porém, o poema. A distinção entre o poema e essas expressões poéticas – inventadas ontem ou repetidas há mais de mil anos por um povo que conserva intacto seu saber tradicional — radica-se no seguinte: o poema é uma tentativa de transcender o idioma; as expressões poéticas, ao contrário, vivem no mesmo nível da fala e são resultados do vaivém das palavras nas bocas dos homens. Não são criações, obras. A fala, a linguagem social, concentra-se no poema, articula-se e levanta-se. O poema é a linguagem erguida.”
Octavio Paz, in O arco e a lira

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