Marcela
amou-me durante quinze meses e onze contos de réis.
(Machado
de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas)
Se
te fatigaste em seguir, correndo, os que iam a pé, como poderás
competir com os que vão a cavalo? (Jeremias, XII, 5)
1.
Ah! o amor. O amor de Jandira me custou sessenta mil-réis de bonde,
quarenta de correspondência, setenta de aspirina e dois anos de
completo alheamento ao mundo. Fora cinquenta por cento de meus
cabelos e as despesas com os clínicos que, erroneamente, concluíram
ser hereditária a minha calvície.
Mas
os médicos que procurei nada entendiam de alma e nem eu, tampouco,
conhecia suficientemente a minha família.
Só
mais tarde descobri o erro deles. Foi Dora, uma espanholinha cor de
lírio, que gostava de dança clássica e mascar chicletes, quem me
revelou a origem de meu mal.
2.
Como os bons remédios, Dora me ficou barato. Algumas dúzias de
chicletes, cinco bilhetes de festivais de caridade, onde — devo
confessar — ela dançou divinamente; uma caixa de orquídeas e
apenas dois envelopes de aspirina. Tudo por oitenta mil-réis.
Em
troca dessa ridícula quantia, fiquei conhecendo a história de meus
ancestrais, o motivo da minha irresistível atração pelo amor e
pela contabilidade.
Antes
não soubesse que o meu sentimentalismo era hereditário! Não teria
adquirido essa obsessão de consultar alfarrábios e viver
vasculhando árvores genealógicas.
Deste-me,
inefável Dora, o ofício mais cansativo do mundo.
3.
Porém a minha mania de escrever não nasceu dos movimentos graciosos
e harmônicos do corpo de Dora. Não. Teve origem no meu noivado com
Aspásia. (Como é dispendioso um noivado! Até hoje não sei em
quanto me ficou esse meu desafortunado romance.) Ou, melhor, a culpa
também não coube a minha noiva, como por muito tempo me pareceu.
Mas a certo antepassado, um alentejano beberrão, que chegou a
escrever dez volumes sobre a utilidade das bebidas espirituosas e
seis sobre a não hereditariedade do vício alcoólico.
Para
maior entendimento destas memórias, devo ainda esclarecer que esse
meu ancestral, José Antônio da Câmara Bulhões e Couto, morreu de
desgosto ao descobrir que dois de seus bisavós tinham falecido em
consequência de cirrose hepática. Não resistiu à derrocada de
suas teorias e criou, assim, uma lamentável exceção entre os da
minha honrada estirpe: foi seu único membro que não desapareceu
vitimado pelo amor.
4.
Quem chegar a ler estas páginas poderá pensar que estou exagerando.
Todavia, incorrerá em erro. Os desatinos amorosos dos meus
antepassados chegaram a tal ponto que um deles, Basílio da Câmara
Bulhões e Couto, piedoso bispo, cujos milagres cronistas
portugueses, os mais sérios, registram, faleceu em virtude de uma
paixão. Isso se deu quando, vindo das Índias, de volta a Portugal,
o navio em que viajava foi assaltado por piratas chineses, que
levaram a tripulação e passageiros para a China. Nesse país, o
virtuoso bispo, por uma dessas enigmáticas circunstâncias que só o
diabo pode explicar, veio a se apaixonar por uma chinesa excepcional.
Excepcional porque comia arroz com as mãos, em vez de com os
clássicos pauzinhos.
Pobre
bispo! Ele que tantos milagres fizera não conseguiu que a
anticonvencional chinesinha lhe dedicasse uma parcela sequer de seu
meigo coração oriental.
E
numa tarde brumosa — a descrição vai por conta da minha
imaginação —, entre juncos, papoulas e flores de lótus, faleceu
murmurando o nome da paganíssima Lu-chu-tzé. (Que em paz esteja a
sua alma, que a do meu tio padre por certo está.)
5.
Mas de todos os Bulhões o mais notável foi o meu tataravô Pedro
Inácio, cujo nome herdei.
Um
lírico, o meu tataravô Pedro Inácio! Usava fraque, monóculo, e
todas as tardes reunia os escravos da fazenda para ouvi-lo recitar os
clássicos franceses. E tamanha era sua estima pelas artes que a seus
escravos deu nomes de pintores, músicos e poetas.
Quando
moço, foi o maior conquistador de nossa terra. Casado, cedeu o lugar
a seu irmão Acácio.
A
morte da esposa, porém, fez renascer nele a chama amorosa da
mocidade. Sem atentar para a velhice já se aproximando, vivia a
peregrinar pelas fazendas de seus filhos e sobrinhos, tentando em vão
conquistar noras e sobrinhas.
Certa
ocasião, pernoitando em uma fazenda de parentes, onde moças bonitas
e alegres passavam as férias, coincidiu que o quarto dado ao meu avô
Pedro Inácio ficasse junto de um dos ocupados por aquelas. E como as
paredes dos aposentos não chegassem até o teto, alta noite, ele as
escalou. Contudo, não logrou sucesso em seu intento. Não contara
com uma despensa estreita que separava seu quarto do das moças.
No
dia seguinte, encontraram-no morto, vitimado por uma fratura na
espinha. Morrera gloriosamente, buscando o amor, entre queijos e
cebolas.
6.
Seu irmão Acácio, entretanto, não se casou. Tinha um aguçado
instinto de viajante que o levava a perseguir as mulheres aonde quer
que elas fossem.
Em
determinada época, passou pela cidade uma companhia de óperas, cuja
prima-dona distinguia-se pelo encanto e invulgar beleza. E lá se foi
o tio Acácio, companhia e tudo.
Percorreu
vários países, assistiu a mil e tantas representações, aplaudindo
com entusiasmo crescente a sua bela amante.
Mas
como lhe acabasse o dinheiro e já se tornassem raros seus presentes
em moeda e joias, a mulher abandonou-o em Roma. Lá morreu, não se
sabe se de fome ou paixão. Os da minha família preferem que em
razão desta última, pois Acácio é para eles um belo exemplo de
fidelidade sentimental. Além de belo, o único que conheceram entre
seus componentes.
7.
Tio Paulo, o mais moço dos irmãos do avô Pedro Inácio, preferia
jogar damas, contar anedotas picantes e dar beliscões nas nádegas
das escravas. Por limitar suas conquistas ao elemento africano e a
sua cultura a histórias frascárias, foi sumariamente banido da
crônica de nossa família.
Todavia,
não se envergonharam os seus irmãos, quando da partilha da herança
paterna, de o lesarem, dando-lhe, em vez das melhores terras, as
melhores negras.
Nem
por isso sentiu-se espoliado e repetia sempre aos que lhe insinuavam
o contrário:
— Sou
grato a meu pai pelo gosto apurado em escolher as escravas e a meus
irmãos por não lhe reconhecerem essa qualidade.
Atacado
por terrível moléstia (por que não dizer lepra?), que aos poucos
lhe arruinava o físico e já sem recursos para tratar-se, preferiu
alforriar as escravas a vendê-las. Estas, por seu turno, não o
abandonaram e até a sua morte proveram o sustento dele.
Próximo
à agonia, assistido pelas devotadas mulheres, balbuciava
continuamente:
— O
outro mundo não me assustaria tanto se me garantissem ser negras as
onze mil virgens de Maomé.
8.
Deus meu! Não terminarei minhas memórias. O homem põe e seus
antepassados dispõem. Acabo de fazer uma descoberta espantosa: não
sou filho de meu pai, nem de minha mãe!
Tomei
conhecimento dessa incômoda revelação por acaso, dias atrás,
quando discutia as minhas teorias sobre a hereditariedade com o
médico que assistiu o parto da minha suposta mãe. Disse-me, num
momento em que ele não conseguia contestar meus argumentos, que eu
apenas substituíra um aborto.
Como
a minha mãe verdadeira não tivesse sobrevivido ao meu nascimento —
explicou-me o médico — e fosse difícil saber, entre tantos homens
que frequentavam a sua casa, qual seria meu pai, trocaram-me pelo
feto da minha mãe adotiva.
Maldita
revelação! Agora não posso mais saber a causa da minha vocação
para o amor e a razão da minha calvície. E só de pensar que nos
meus estudos genealógicos gastei seis contos, duzentos e trinta e
cinco mil e quinhentos réis, sinto vontade de destruir o mundo.
Resta-me
somente um consolo: a queda das minhas teorias não beneficiará meus
clínicos. Entre os dez indivíduos que o doutor Damião afirma estar
o meu pai, não há um calvo sequer.
9.
Acabo de me reconciliar com o mundo. Dora, que no início destas
memórias, erradamente, julguei ter-me custado apenas oitenta
mil-réis (não sabia naquela época em quanto ficariam as minhas
pesquisas genealógicas), surgiu ontem, aos meus olhos, numa esquina.
Há dois anos não a via. E foi com surpresa que a encarei, vendo-a
na minha frente, a ostentar uma gordura exagerada naquele corpo que
um dia pertencera a um cisne.
Não
pude conter a piedade ao vê-la gorda e flácida, sem a antiga
harmonia de movimentos, sem a graciosidade de formas. Nem mesmo no
olhar trazia aquela ternura de lírios, que tanto bem fazia aos que
dela se aproximavam.
Conversamos
pouco, o bastante para saber que retornava de um sanatório, onde
deixara encerrado todo o sonho de levar a existência bailando para
os homens.
10.
Ao chegar a casa, senti remorsos de não ter consolado Dora, de não
lhe ter falado ternamente que também sou demasiado infeliz.
Mas
durante os poucos minutos que conversamos, nada disso pude dizer-lhe,
porque o esforço de conter, a todo custo, uma pergunta que desejava
fazer-lhe não me permitiu. Foi uma tarefa dura a de refrear minha
curiosidade em saber quanto lhe custara a estada no sanatório,
talvez bem mais do que meus estudos de genealogia.
Murilo
Rubião, in Obra Completa
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