Chorava.
Não propriamente o medo da surra em perspectiva, apesar de roto o
uniforme. Nem para isso teria tempo a mãe. Quando muito uns berros
em meio à rotina. Tiraria a roupa; a outra, suja, encontraria no
fundo do armário, para a vadiagem. Ao dobrar a esquina tinha a
certeza de que nada faria hoje. Os pés, como facas alternadas,
cortavam o barro de pós-chuva. A mangueira do terreno baldio onde
caçavam gafanhotos, ou jogavam bola, tinha pendente a corda do
balanço improvisado. Reconheceu-a. Fora sua e restara da forte
embalagem que os seus trouxeram. Ninguém na rua. Os outros decerto
não voltaram da escola ou já almoçavam. Ninguém percebeu-lhe o
choro. A vizinha sorriu ao espantar o gato enlameado da poltrona da
varanda. Conteve o soluço ao empurrar o portão. Com a manga
esfregava o rosto marcando faixas de lama na face. Brilhavam ainda da
chuva as folhas do fícus. Olhou a trepadeira. Novinha, mas já quase
passando a janela. Na sala hesitou entre a cozinha e o quarto. A mãe,
de lenço à cabeça, estaria descascando batatas ou moendo carne.
Despertara-lhe a atenção ao lançar os livros sobre a cômoda. Que
trocasse a roupa e fosse buscar cebolas no armazém. Nada mais. Nem o
rosto enfiara para ver-lhe o ar de pranto e a roupa em desalinho. À
entrada do quarto surpreendeu o blá-blá do caçula que, olhos no
teto, tocava uma harpa invisível. Era-lhe estranha a sala, quase
estranhos, apesar dos meses, os companheiros. Os olhos no
quadro-negro espremiam-se como se auxiliassem a audição perturbada
pela língua. Autômato, copiava nomes e algarismos (a estes
compreendia), procurando intuir as frases da professora. As vezes
perdia-se em fitá-la. Dentes incisivos salientes, os cabelos
lembrando chapéus de velhas múmias, os lábios grossos. Outras,
rodeava os olhos pelas paredes carregadas de mapas e figurões. A
janela lembrava-lhe a rua, onde se sentia melhor. Podia falar pouco.
Ouvir. Nem provas nem arguições. O apelido. Amolava-o a insistência
dos moleques. Esfregou ante o espelho os olhos empapuçados. Ontem
rolara na vala com Caetano após discussão. Atrapalhou o jogo. O
negrinho cresceu em sua frente no ímpeto de derrubá-lo. Gringuinho
burro!
Ajeitou
sobre a cama o uniforme. A lição não a faria. Voltar à mesma
escola, sabia impossível também. Por vontade, a nenhuma.
Antigamente, antes do navio, tinha seu grupo. Verão, encontravam-se
na praça e atravessando o campo alcançavam o riacho, onde nus
podiam mergulhar sem medo. À chatura das lições do velho barbudo
(de mão farta e pesada nos tapas e beliscões) havia o bosque como
recompensa. Castanheiros de frutos espinhentos e larga sombra,
colinas onde o corpo podia rolar até a beira do caminho. Framboesas
que se colhiam à farta. Cenoura roubada da plantação vizinha. A
voz da mãe repetia o pedido de cebolas. Coçar de cabeça sem
vontade. No inverno havia o trenó que se carregava para montante, o
rio gelado onde a botina ferrada deslizava qual patim. Em casa a sopa
quente de beterrabas, ou o fumegar de repolhos. Sentava-se no colo do
avô recém-chegado das orações e repetia com entusiasmo o que
aprendera. Onde o avô? Gostava do roçar da barba na nuca que lhe
fazia cócegas, e dos contos que lhe contava ao dormir. Sempre
milagres de homens santos. Sonhava satisfeito com a eternidade. A voz
do avô era rouca, mas boa de se ouvir. Mais quando cantava. Os olhos
no teto de tábuas, ou acompanhando a chaminé do fogão, a melodia
atravessava-lhe o sono. Hoje entrara tarde na sala. Não gostava de
chamar a atenção sobre si, mas teve que ir à mesa explicar o
atraso. Cinquenta pares de olhos fixos em seus pés que tremiam. O
pedido de cebolas veio mais forte. Gargalhada maciça em contraponto
aos titubeios da boca, olhos e mãos. A custo conteve as lágrimas
quando tomou o lugar. Chorara assim quando no primeiro sábado saiu
de boné com o pai em direção à sinagoga. Caetano, Raul, Zé
Paulo, Betinho fizeram coro ao fim da rua repetindo em estribilho o
gringuinho. Suspenso o chocalho deparou com os olhos do irmão nos
seus. Blá-blá. Sorriso mole. Sentara-se. Abrira o livro na página
indicada, tenteando como um cego, para entrar no compasso da leitura.
Nem às figuras se acostumara, nem às histórias estranhas para ele,
que lia aos saltos. Fala gringuinho. Viera de tnis a voz, grossa, de
alguém mais velho. Fala gringuinho. Insistia. Ao girar o pescoço na
descoberta da fonte fora surpreendido pela ordem de leitura. Olhou os
dentes aguçados insinuando-se no lábio inferior como para escapar.
Explicar-lhe? Como? Mudo curvou a cabeça como gato envergonhado por
diabrura. Era-lhe fácil a lágrima. Lembrou um domingo. Enfiou-se
pelo pátio com Raul que o chamara à sua casa. No fundo do quintal
cimentado, sob coberta, dispusera os dois times de botões. Da copa o
barulho, ainda, de talheres, fim do ajantarado. Chamaram. A mãe
cortou o melão e separou duas fatias. Raul agradeceu pelos dois.
“Ah! é o gringuinho!” Expelida pelo nariz a fumaça do cigarro,
o pai soltara a exclamação. Quase o sufoca a fruta na boca. Os tios
concentraram nele a atenção. Parecia um bicho encolhido, jururu,
paralisado, as duas mãos prendendo nos lábios a fatia. ‘Fala
gringuinho!”Coro. Fala gringuinho. Novamente as vozes atrás da
carteira. Da outra vez correra como acuado em meio a risos. Recolhido
no quarto desabafou no regaço da mãe. Blá-blá. Agitar do
chocalho. Um cheiro de urina despertara-o da modorra. Um fio escorria
da fralda no lençol de borracha. Fala gringuinho. Sentiu-se crescer
e tombar para trás a cadeira.
Em
meio à gritaria a garra da velha suspendeu-o amarrotando a camisa.
Cercado, alguns de pé sobre as mesas, recolheu-se à mudez
expressiva. Da vingança intentada restara a frustração que se não
explica por sabê-la impossível. Blá-blá! A poça de urina
principiava a irritá-lo e após esperneios o irmão arrematou em
choro arrastado. Agitou o chocalho novamente, com indiferença, olho
na rua. O matraqueado aumentara o choro. Não percebeu a entrada da
mãe. Sem olhá-lo recolheu o irmão no embalo. Tirou da gaveta a
fralda seca, e entre o ninar e o gesto de troca passou-lhe a
descompostura. Insistiu no pedido do armazém. Ele tentou
surpreender-lhe o olhar, conquistar a inocência a que tinha direito.
Depois gostaria de cair-lhe ao colo, beijá-la e contar tudo, na
certeza de que lhe seria dada a razão. Mas nada disso. Recolhendo os
níqueis procurou a porta. Traria as cebolas. E não contaria que, ao
ser repreendido na escola, na impotência de dar razões, quando a
velha principiou a amassar-lhe a palma da mão com a régua negra e
elástica, não se conteve e esmurrou-lhe o peito rasgando o vestido.
Quando atravessou o portão acelerou a marcha impelido pelo desejo de
ser homem já. Julgava que correndo apressaria o tempo. Seus pés
saltitavam no cimento molhado, como outrora deslizavam, com as
botinas ferradas, pelo rio gelado no inverno.
Samuel
Rawet, in Os cem melhores contos brasileiros do século
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