terça-feira, 26 de dezembro de 2017

À procura de um rosto

O homem trazia um papel na mão, e consultou-o antes de perguntar se era ali que morava o sr. Fulano. E diante da resposta afirmativa: “Desculpe, mas o senhor morava em Belo Horizonte há trinta anos?”. Ouvindo que sim, pediu licença para apresentar-se. Nome e profissão: fotógrafo. O que desejava era saber de mim se me lembrava de certa empregada que tive em 1928, Marciana da Silva. Como havia de lembrar? Fazia tanto tempo, e não é comum guardar nome de empregadas, salvo quando ficam muitos anos na casa e se afeiçoam ou se fazem afeiçoadas. De 1928 eu não tinha lembrança alguma desse gênero. Retivera o nome de algumas empregadas simpáticas, nenhuma era Marciana. Ele podia fornecer-me outra indicação? “Não senhor, não tenho a menor indicação. Aliás, era isso mesmo que eu vinha com esperança de obter do senhor: uma indicação qualquer a respeito de Marciana. É minha mãe.”
Ah. Pode descrever-me o tipo?
Também é impossível. Não sei nada sobre ela, a não ser o nome. Nunca a vi desde que me entendo por gente, e do tempo de garoto não guardo a menor lembrança dela.
E como sabe que ela foi minha empregada?
Está aqui nessa carta do senhor ao diretor do Abrigo de Menores, pedindo minha internação. Passei seis anos lá, quando saí me deram cópia. Não repare estar meio rasgada, não é de hoje.
O papel falava, realmente, de um garoto de sete anos, sem pai, filho de Marciana da Silva, cozinheira. O menino e uma irmã de cinco anos viviam em companhia da avó, num povoado. A avó falecera, alguém tomara conta da irmã, ele ficara ao desamparo.
Palavra escrita desencava lembrança, e uma vaga Marciana, sem rosto mas com um problema de filho, despontou na memória, palidamente.
Agora estou me recordando, sim. Marciana… Uma alta, ossuda. Só isso. Parece que ela ia visitá-lo sempre, comprava presentes para levar…
O senhor não está enganado? Nunca recebi visita lá, nem presente, que me lembre. Deve ser outro caso.
E por que não me procurou, ao sair do Abrigo?
Eu tinha treze anos e não sentia falta. Fui trabalhar numa fazenda do oeste de Minas, levei tempo na roça. Depois, rodei por esse mundo. Guardava o papel comigo, sem interesse de indagar. Não tinha a menor curiosidade de minha mãe, entende? Era como se ela não existisse, como se eu tivesse nascido do nada. Sem retrato dela, sem um objeto, sem uma voz para ouvir quando a gente está sozinho e garra a pensar nos outros, como é que eu ia lembrar? Depois fui mudando. Não sei explicar, me veio o interesse por minha mãe, como é que ela seria, como não seria. Voltei para Belo Horizonte, andei procurando o senhor feito agulha. Ninguém sabia informar. Afinal vim para o Rio, estou aqui há meses. Ontem achei o seu endereço na lista telefônica. Fique sossegado, não vim lhe pedir dinheiro, ganho pouco mas o bastante. Queria era saber de minha mãe, se ela ficou muito tempo em sua casa, para onde terá ido, se alguma vez deu notícia. Estará viva? O senhor não se lembra do rosto dela?
É pena eu não ter nada para lhe contar senão essa lembrança vaga de sua mãe. Mas não faça mau juízo dela porque não o procurou. Quem sabe?
O senhor pensa que eu faço? Eu compreendo tão bem que ela não quisesse saber de mim. Não podia me criar, só me daria miséria. Sua fé estava toda no Abrigo, que talvez fizesse de mim alguma coisa. Se não me visitava é porque não queria se prender a mim, nem me prender a ela, não acha?
Acho. Foi isso, certamente.
Sinto tanta falta de minha mãe, o senhor não avalia. Já não sou criança. Isso vem com a idade, talvez… no meu caso.
Talvez. Que vai fazer agora?
Vou continuar procurando. Mesmo que não encontre, quero saber como era, preciso de um rosto, de uma fisionomia que eu possa fixar bem, como se a tivesse conhecido. O senhor me desculpe se achar meio esquisito eu me contentar com isso. Sem nada é que não posso ficar. Muito obrigado, até qualquer dia.
Saiu, e não parecia desanimado.
Carlos Drummond de Andrade, in 70 historinhas

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