À
meia-noite, a natureza instala no mundo diversos palcos para que
estranhas manifestações tenham a oportunidade de suceder. Ruídos
bafientos, cruzamentos de espécies diferentes, violações de campos
desertos, chuvas brilhantes, murmúrios de melaço, ocorrências mais
assim — equívocas.
Foi
uma vez: dois compadres caminhavam. Com olhares, escavavam o breu.
O
Outro tinha uma barba imodesta, desarrumada em seus crespos pelos.
Acompanhava-o, há anos, um tédio pegajoso que nem os futebóis nem
as cervejas conseguiam despregar. Um semblante gêmeo da face obscura
da lua. Os olhos, como que amarelados, em franca sonolência. Os pés,
metidos muito para dentro, faziam dele um ser desinteressante a quem
chamavam, com leveza, “o Outro”.
— Ó
compadre — começou o Outro. — O compadre frequenta
encruzilhadas?
— Eu?
Frequentar encruzilhadas? — suspiro. — Deus me livre!
— Mas
porquê? Tem medo?
— Eu?
Ter medo? Não me faça rir, compadre!
—
Então... — pensativo, o Outro. — Se
não frequenta encruzilhadas, tem medo delas.
— Eu?!
Medo delas? Tenha juízo, compadre.
Caminhavam.
As árvores ao largo chocalhando barulhinhos de folhas nervosas,
irritadas com o vento. A lua (quase) grávida, faltando-lhe uma unha
negra para isso. E o mocho, certeiro, no seu olhar e pio.
— Quer
dizer que o compadre não tem medo de se pôr, à meia-noite, numa
encruzilhada...? — o Outro recomeçou.
— Eu?
À meia-noite? Não tenho medo nenhum... mas não tenho razão para
fazer isso, compadre.
— Então
fazemos uma aposta...! — pararam de caminhar.
— Nós?
Uma aposta? Pois seja, compadre; veja lá, não se vá endividar
mais... Depois a comadre reclama — sorriu.
— Se
o compadre não tem medo de estar à meia-noite numa encruzilhada,
também não tem medo que lá apareçam determinadas criaturas... —
voltaram a caminhar.
— Eu,
medo d’outras criaturas...? Mas quê, fantasmas vestidos de branco?
Assombrações? — desatou na sua aguda gargalhada.
— Ou
outras mesmo... — o Outro olhou-o seriamente. — Numa
encruzilhada, à meia-noite, tudo pode suceder.
— Bem
— cogitou o compadre. — Se aparecer o Diabo é mais grave... Se
for um lobisomem não há problema nenhum.
—
Então..., o compadre também não tem
medo de lobisomens?
— Eu?
Medo do lobisomem?! Ó compadre, por amor de Deus! Por amor de
Deus... Até lhe fazia festinhas!
O
Outro coçou a barba, a mansos modos, numa apreciação da aposta
possível — as unhas longas arranhando os incrustados pelos. A
barba cerrada não permitia ver o queixo, a ossadura proeminente, as
cicatrizes. Olhou a lua. Falou:
— Então
aposto consigo, compadre — pensativo.
— Sim?
O quê que aposta, compadre?
—
Aposto que o senhor amanhã não tem
coragem de vir à encruzilhada, precisamente à meia-noite...
— Quem,
eu? Precisamente à meia-noite? Por amor de Deus, compadre... Está
apostado! E vamos apostar o quê?
—
Aquela sua medalha de prata, compadre —
sorriu o Outro, mas sorriu apenas usando o interior da garganta.
— Pois
seja, compadre. E se eu ganhar, aquele seu garrafão de vinho muito
antigo... O que acha?
— Pois
seja, compadre... Mas amanhã, virá sozinho.
— Pois
sim, sozinho, claro está — sorriu o compadre.
— Então
está combinado. Meia-noite, sozinho — disse o Outro.
Seguiram
calados. O mocho cessou o seu assobio noturno. A lua subia, subia,
querendo esconder-se.
O
dia seguinte passou de repente. O fim da tarde, a mais bem dizer,
encontrou o compadre na taberna. Um copo atrás do outro, como convém
ao bom cliente. O sabor delicado do vinho afagando a língua,
pendurando-se na garganta, violando os ácidos corrosivos do
estômago. Mais um, Belito. Traga-me só mais um..., disse,
vezes sem conta.
O
compadre, bem-disposto, jantou em casa. Lá pelas onze, pôs-se a
caminhar em direção ao local combinado. A digestão exigiu um passo
mais lento, os minutos estenderam-se. E, finalmente: a encruzilhada —
um vislumbre de sombras dançantes.
A
lua causa na terra sombras bem distintas das do sol. Enjeitadas
figuras prateadas, um capim que dança ao vento, uma árvore gigante,
um pássaro que, tardado, voa. Em plena encruzilhada, parou — o
compadre. Do capim movediço, um grupo insignificante de gafanhotos
voou, deixando à vista nua dois ou três pirilampos que se haviam
escondido. Bem digo, a lua causa na terra sombras de prata que
ornamentam encruzilhadas. À meia-noite.
O
compadre quase adormecia. Esperar, no fundo, não passa de um
exercício de paciência, um modo de estar pouco próprio aos
humanos. Já as árvores suportam melhor esse estádio.
Encostou-se
à árvore.
Por
mais que quisesse ignorar, era difícil: sentiu, no cachaço, um ar
quente penetrar-lhe a espinal medula. Do vinho..., pensou. Mas
seguido de um arrepio gélido, o bafo fez-se sentir mais consistente.
Uma respiração certeira, um momento próprio para se arrepiar de
verdade. Querem ver...?
Virou-se,
tão súbito quanto o álcool permitiu. Olhou, castanha, maciça, a
árvore. E sentiu, instantaneamente, a quentura cobrir-lhe o pescoço,
quase uma massagem gasosa; uma almofada de ar; um carinho quente.
Apetecia deixar-se adormecer. Mas, a aposta! O Diabo não é! Não
cheira a nada, não vejo fogo, não está o cão que o acompanha.
Sorriu. Virou-se, novamente. Os capinzais dançavam mais exaltados. A
lua estava prestes a parir, esférica como num poema; úmida até,
pareceu-lhe.
Ouviu
o primeiro ruído. Que susto — que susto!
Era
uma passada consistente, uma boa quantidade de capim pisado.
Arrepiou-se. Sentiu-se invadido por uma sinfonia de movimentos nos
pelos dos braços, aperto de bexiga, esticão na coluna e umidade no
olhos.
Ouviu
o segundo ruído. Nitidamente, um arfar.
A
criatura respirava a modos profundos, gastava muito oxigênio de cada
vez, só podia ser grande. No chão, a sombra da evidência: a
criatura era enorme. O compadre, ainda tonto, afastou-se da árvore,
posicionando-se bem no centro da encruzilhada. Continuava com a
sensação do bafo arfante no pescoço mas, virando-se, nada
vislumbrava. No chão, quase em relevo, a sombra mantinha-se. Que
criatura se expressa assim, a metades de consistência?
Fechou
os olhos por segundos. Antes de os abrir, sentiu o primeiro cheiro.
Quase se absteve de voltar a espreitar a realidade. O cheiro: um
misto de cavalo, terra, avestruz... ou, simplesmente, o suor de um
antílope. Abriu os olhos: o monstro enorme abriu a boca fétida.
Urrou, expansivamente.
Mas!,
diz que o susto é uma construção interna, carecendo de
pressupostos. E o compadre não estava munido deles. A criatura
estremeceu. Urrou expansivamente, como foi dito, bem junto à face
neutra do compadre. E urrou renovadamente. O segundo cheiro chegou,
vindo da boca: mistelas antiquíssimas, ervas raras, penas de pato,
vinho e lama.
E,
espante-se, o compadre sorriu.
A
criatura quase entrou em pranto. Uma timidez repentina invadiu-a. O
compadre não dispunha de condições para o devido susto. Aliás, o
compadre sorriu, ele sim, desabando numa enorme gargalhada, ecoada
nos mistérios daquela encruzilhada. Olhou para cima, para o cimo da
criatura. Cambaleante, falou assim:
—
Calma, compadre!, calma. Não fique
assim... É só uma aposta!
Ondjaki,
in E se amanhã o medo
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