domingo, 13 de agosto de 2017

Atualidade do ovo e da galinha

De manhã na cozinha sobre a mesa está o ovo.
Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo apenas: ver o ovo é sempre hoje: mal vejo o ovo e já se torna ter visto um ovo, o mesmo, há três milênios. – No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo. – Só vê o ovo quem já o tiver visto. Como um homem que, para entender o presente, precisa ter tido um passado. – Ao ver o ovo é imediatamente tarde demais: ovo visto, ovo perdido: a visão é um calmo relâmpago. – Ver o ovo é a promessa de um dia chegar de novo a ver o ovo. – Olhar curto e indivisível; se é que há pensamento: não há; há o ovo. – Olhar é o necessário instrumento que depois de usado, jogarei fora. Ficarei sem o ovo. – O ovo não tem um si-mesmo. Individualmente ele não existe.
Ver realmente o ovo é impossível: o ovo é superinvisível como há sons supersônicos que o ouvido já não ouve. Ninguém é capaz de ver o ovo. O cão vê o ovo? Só as máquinas veem o ovo. O guindaste vê o ovo. – Quando eu era antiga um ovo pousou no meu ombro. – O amor pelo ovo também não se sente, o amor pelo ovo me é supersensível, não dá para chegar a saber que se sente.
A gente não sabe que ama o ovo. – Quando eu era antiga fui depositária do ovo e caminhei de leve para não entornar o silêncio do ovo. Quando morri, tiraram de mim o ovo com cuidado: ainda estava vivo. – Assim como não se vê o mundo por este ser óbvio, não se vê o ovo porque ele é óbvio. O ovo não existe mais? Está existindo neste instante. – Você é perfeito, ovo. Você é branco, ovo. – A você dedico o começo. A você dedico a primeira vez.
Ao ovo dedico a nação chinesa.
O ovo é uma coisa suspensa. Nunca pousou. Quando pousa, não foi ele quem pousou, foi uma superfície que veio ficar embaixo do ovo. – Olho o ovo na cozinha com atenção superficial para não quebrá-lo. Tomo o maior cuidado de não entendê-lo. Pois, sendo impossível entendê-lo, sei que se eu o entender é porque estou errando. Entender é a prova do erro. – Jamais pensar no ovo é um modo de tê-lo visto. – Será que sei do ovo? É quase certo que sei. Assim: existo, logo sei. – O que eu não sei do ovo é o que realmente importa. O que eu não sei do ovo me dá o ovo propriamente dito. – A Lua é habitada por ovos.
O ovo é uma exteriorização: ter uma casca é dar-se.– O ovo desnuda a cozinha. Faz da mesa um plano inclinado. O ovo expõe tudo. – Quem se aprofunda num ovo, quem vê mais do que a superfície do ovo, está querendo outra coisa: está com fome.
O ovo é a alma da galinha. A galinha desajeitada. O ovo certo: A galinha assustada. O ovo certo. Como um projétil parado no ar. Pois o ovo é ovo no espaço. Ovo sobre azul. – Eu te amo, ovo. Eu te amo como uma coisa nem sequer sabe que ama a outra coisa. – Não toco nele. A aura de meus dedos é que vê o ovo. Não toco nele. – Mas dedicar-me à visão do ovo seria morrer para a vida mundana, e eu preciso dela, da gema e da clara. – O ovo me vê? O ovo me medita? Não, o ovo apenas me vê. E é isento da compreensão que fere. – O ovo nunca lutou para ser um ovo. O ovo é um dom. – Ele é invisível a olho nu. De ovo a ovo chega-se a Deus, que é invisível a olho nu. – Um ovo terá sido talvez um triângulo que tanto rolou no espaço que foi se ovalando. O ovo é basicamente um jarro fechado? Terá sido o primeiro jarro moldado pelos etruscos? Não. O ovo é originário da Macedônia. Lá foi calculado, fruto da mais penosa espontaneidade. Nas areias da Macedônia um homem desenhou-o com uma vara na mão. E depois apagou-o com o pé nu.
Ovo é coisa que precisa tomar cuidado. Por isso a galinha é o disfarce do ovo. Para que o ovo atravesse os tempos a galinha existe. Mãe é para isso. – O ovo vive foragido por estar sempre adiantado demais para a sua época: ele é mais do que atual: ele é no futuro. – O ovo por enquanto será sempre revolucionário. – Ele vive dentro da galinha para que não o chamem de branco. O ovo é branco mesmo, mas não pode ser chamado de branco. Não porque isso faça mal a ele, a quem nada faz mal, mas as pessoas que chamam a verdade de que o ovo é branco, essas pessoas morrem para a vida. Chamar de branco aquilo que é branco pode destruir a humanidade. A verdade sempre destrói a humanidade. Uma vez um homem foi acusado de ser o que ele era e foi chamado de Aquele Homem. Não tinham mentido: ele era. Mas até hoje ainda não nos recuperamos. A lei geral para continuarmos vivos: pode-se dizer “um rosto bonito”, mas quem disser “o rosto” morre por ter esgotado o assunto.
Com o tempo, o ovo se tornou um ovo de galinha. Não o é. Mas, adotado, usa-lhe o sobrenome. – Deve-se dizer “o ovo da galinha”. Se eu disser apenas “ovo”, esgota-se o assunto, e o mundo fica de novo nu. Ovo é a coisa mais nua que existe. – Em relação ao ovo, o perigo é que descubra o que se poderia chamar de beleza, isto é, sua extrema veracidade. A veracidade do ovo não é verossímil. Se descobrirem sua beleza, podem querer obrigá-lo a se tornar retangular. O perigo não é para o ovo, ele não se tornaria retangular. (Nossa garantia é que ele não pode: não pode é a grande força do ovo: sua grandiosidade vem da grandeza de não poder, que se irradia como um não querer.) Como estava-se dizendo, o ovo não se tornaria retangular, mas quem lutasse por torná-lo retangular estaria perdendo a própria vida. O ovo nos põe, portanto, em perigo. Nossa vantagem é que o ovo é invisível para a enorme maioria das pessoas. E quanto aos iniciados, os iniciados disfarçam o ovo como numa maçonaria.
Quanto ao corpo da galinha, o corpo da galinha é a maior tentativa de prova de que o ovo não existe. Pois basta olhar para a galinha para parecer óbvio que o ovo é impossível de existir.
E a galinha? O ovo é o grande sacrifício da galinha. O ovo é a cruz que a galinha carrega na vida. O ovo é o sonho inatingível pela galinha. A galinha ama o ovo. Ela não sabe que existe realmente ovo. Se soubesse que tem em si mesma um ovo, ela se salvaria? Se soubesse que tem em si mesma o ovo, perderia o estado de galinha. Ser uma galinha é a possibilidade de sobrevivência mental da galinha.
Sobrevivência é a salvação. Pois parece que viver não existe. Viver leva à morte. Enquanto o que a galinha faz é estar permanentemente sobrevivendo. Sobreviver chama-se manter luta contra a vida que é mortal. Ser uma galinha é isso. A galinha tem um ar constrangido.
É necessário que a galinha não saiba que tem um ovo. Senão ela se salvaria como galinha, o que também não é nada garantido, mas perderia o ovo em parto prematuro para se livrar de um ideal tão alto. Então ela não sabe. Para que o ovo use a galinha é que a galinha existe. Ela era só para cumprir sua missão, mas gostou. O desarvoramento da galinha vem disso: gostar não faz parte de nascer. Gostar de estar vivo dói.
Quanto a quem veio antes, foi o ovo que achou a galinha como um bom disfarce. A galinha não foi sequer chamada.
A galinha é diretamente uma escolhida. – A galinha vive como em sonhos. Não tem senso de realidade. Todo o susto da galinha é porque estão sempre interrompendo seu devaneio. A galinha é um grande sono. – A galinha sofre de um mal desconhecido. O mal desconhecido da galinha é o ovo. – Ela não sabe se explicar: “Sei que o erro está em mim mesma”, ela chama de erro a sua vida, “não sei mais o que sinto”, etc.
O que cacareja o dia inteiro na galinha é etc., etc., etc. A galinha tem muita vida interior.
Para falar a verdade só tem mesmo é vida interior. A nossa visão de sua vida interior é o que nós chamamos de galinha. A vida interior na galinha consiste em agir como se entendesse. Qualquer ameaça e ela grita em escândalo feito uma doida. Tudo isso no fundo para que o ovo não se quebre dentro dela. Ovo que se quebra dentro da galinha é como sangue. A galinha olha o horizonte.
Clarice Lispector, in A descoberta do mundo

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