Suponhamos,
leitor, que você acorde um dia quatro décadas atrás, no período
entre 1920 e 1930 que sucedeu à Primeira Grande Guerra e onde a
disponibilidade e falta de critério eram gerais: os “Gay
Twenties”, como ficou conhecida nos Estados Unidos a era do jazz,
tão fabulosamente vivida e narrada pelo romancista Scott
Fitzgerald.Suponhamos que você tivesse uma amiga, ou melhor, uma
“amiguinha” rica e quisesse fazer um programa com ela. Iria
encontrá-la em casa metida num peignoir de cetim ciré, sandálias
de pompom, piteira em riste a queimar um Abdoula, envolta em ondas de
Mitsoukou ou Tabac Blond, do perfumista Caron. Ela estaria,
naturalmente, num divã coberto de almofadas, e na testa da jovem
“melindrosa”, você notaria um “pega-rapaz”, ou antes, uma
“belezinha”, feita com uns poucos fios de cabelo.
Você
ficaria, leitor amigo, como é natural, entre surpreso e encantado,
sobretudo quando notasse que, ao sorrir, a sua diva mordia a pontinha
da língua num tique faceiro. E mais encantado ainda quando, ao pedir
um uísque, visse a empregada voltar com um coquetel rose, delicada
beberagem à tona da qual estaria boiando, qual leve batel, uma
pétala de rosa...
Depois
de tomar uns oitenta desses, você ouviria a sua amiguinha adverti-lo
contra os perigos de uma “carraspana”. Mas qual! Estando
habituado ao uísque falsificado da maioria das nossas boates e
bares, você nem estaria sentindo o anunciado “pifão”. Pelo
contrário. Animadíssimo, colocaria uma “chapa” no gramofone e
tiraria sua amiguinha para dançar um ragtime. Em seguida, mirando ao
espelho a sua elegância - calça estreita de flanela, paletó
azul-marinho cintado, camisa listada, gravata borboleta, sapato
camouflage e chapéu de palhinha você, com uma graciosa pirueta de
satisfação, convidaria sua amiguinha para uma saída:
-
Vamos ao chá dançante do Palace Hotel?
E
ela, com um muxoxo:
-
Não, hoje eu preferia muito ir ver o Bataclan. Dizern que é
“supimpa”.
Dado
a coisas mais finas que o vaudeville ou o teatro de revista, você
ainda tentaria convencer o seu “pedaço de mau caminho” a ir, em
vez, à festa do Fluminense ouvir os Corsarinos e sua jazz band: um
negócio do “balacobaco”.
Mas
a menina não estava nada para coisas muito formais.
Em
vista do quê, você, leitor, estirando-se numa otomana, à luz do
abajur cor bleu (como bem caraterizava o fox-trot “Hindustão”)
você pegaria com um gesto displicente os poemas de Hermes Fontes, ou
o La Garçonne de Victor Margueritte - e perdido entre bibelôs,
esperaria que sua amiguinha se arrumasse “com uma rapidez de
Fregoli”, conforme anunciara, referindo-se ao famoso transformista.
Mas
essa arrumação tomaria tempo. Primeiro, desfazer os papelotes e
desbastar a gaforinha - coisa que levava usualmente uma meia hora.
Depois, enfiar as meias fumées, os sapatos mordorés, o chapéu
canotier e passar no pescoço o renard argenté (uma magra raposinha
a morder o próprio rabo). Só então a sua linda vigarista, depois
de um último retoque ao espelho da entrada, iria à vida com você
para diverti-lo um pouco à custa de uns magros “caraminguás”.
De
volta ao tempo presente, leitor, você acharia que não era má a
ideia de uma saída para ir ao 36 ver o Caymmi, ou ao Sacha's para
gozar do refrigerado. Aí você passaria a mão no telefone, discaria
um número, e quando a voz feminina lhe respondesse do outro lado
você diria assim:
-
Como é, ó vigarista? Mete aí um bom pano em cima de ti e vamos
enfrentar um escurinho musicado. Não, nada de botar banca pra cima
de mim. Eu te manjo. É isso mesmo. Vamos lá tirar a ficha da
moçada. A gaita anda curta para o scotch mas dá para molhar a
garganta com uma “loura”. Menina, hoje estou enxugando o fino! O
couvert já está conversado. Você sabe que o papai mora no assunto.
Taca peito.
Vinicius
de Moraes, in Para viver um grande amor
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