Aqueles
sim que eram bons dias. Pergunte ao pó na estrada, pergunte às
teias de aranha em meu quarto no St. Paul, vá até os camundongos
que saem da quina do quarto, ah, camundonguinhos tão amigos, eu os
tinha como meus bichinhos de estimação, até conversava com eles.
“Olá, camundongo, como vai você esta noite, onde estão seus
amiguinhos?” Claro, amigo de homem e besta também, alimentando os
camundongos para torná-los meus amigos, um grande homem, uma alma
generosa, leitor de Thoreau e Emerson, grande escritor em ascensão
que precisava ser tolerante, espalhando migalhas para os camundongos
comerem à noite, com as luzes do St. Paul piscando, e eu os
observava correndo para lá e para cá, até que tinha de terminar
com aquilo, eles ficavam afetuosos demais, subiam na minha cama e
sentavam-se ao pé dela, éramos grandes amigos, mas, que diabo, eles
se multiplicavam como chineses e o quarto era pequeno demais.
Falo
como um lunático? Então me deem a insânia, me deem aqueles dias de
volta. Deem-me o caprichoso romance de alguém que se compadecia da
humanidade, aquela grande pessoa Bandini, autor de saídas
magníficas, a piedade de tudo aquilo, a cidade absurda ao meu redor,
bem-afortunada mãe adotiva de meu gênio. E subindo Angel’s
Flight, duzentos degraus até Bunker Hill no meio da cidade, degraus
consagrados, Senhor, Bandini pisava neles a caminho da imortalidade!
Um dia, meu povo, vocês que só dizem sim, estes degraus ressoarão
a minha memória e ali adiante naquele muro alto haverá uma placa de
ouro, e sobre ela um baixo-relevo — a imagem do meu rosto. Estou
sozinho agora? Bah! Minha solidão dá frutos e haverá uma Los
Angeles do amanhã para lembrar que uma Voz subiu estas escadas e que
Benny, o Agiota lá da esquina de Third e Hill vai chorar de alegria
ao contar a seus netos que certa vez ele falou com um homem da
eternidade. E daí até o meu quarto, para ter uma conversa comigo
mesmo ao espelho. Ou talvez praticar um pouco para os dias da minha
fama, colocar o espelho segundo um ângulo, ver como eu fico sentado
à máquina de escrever, o grande homem trabalhando, respondendo às
perguntas da imprensa, piscando pacientemente enquanto os flashes
explodem. “Senhores, senhores! Por favor! Meus olhos, senhores —
afinal de contas, eu também tenho o meu trabalho, os senhores
sabem.” Risadas dos cavalheiros da imprensa. “Jesus, aquele
sujeito, Bandini, um sujeito muito bacana, a fama não o estragou.
Como um de nós, jornalistas comuns — um sujeito realmente bacana.”
Perguntem
às recepções empoeiradas, perguntem ao saguão empoeirado,
perguntem às pessoas empoeiradas no empoeirado saguão do St. Paul,
às pessoas cansadas e empoeiradas, velhas, em vias de virar pó, vão
morrer aqui, aos velhos e velhas, a poeira de Indiana e Ohio, de
Illinois e Iowa, no seu sangue, destinados à poeira e à morte numa
terra poeirenta sem raízes. Seis anos atrás e tantos já viraram
pó, mas ainda existem alguns que se lembram do grande escritor,
nenhuma poeira em sua boca, grande escritor mentiroso falando sobre
grandes contos em The Saturday Evening Post e provando aquilo
com uma história numa revista verde. Grande escritor, frequentador
de livrarias poeirentas, pegando revistas empoeiradas e soprando o pó
da sua querida história, comprando-as, com sua história, para que
não se transformassem em pó. Sim, pergunte ao pó na estrada.
Vejam
só, o grande escritor escrevendo cartas para casa, para a mamãe,
grande escritor achando a vida dura, mas, veja, mamãe, tenho uma
história saindo em The Atlantic, no Pacífico, por isso me
mande cinco dólares, mamãe, me mande cinco dólares. E assim com
cinco dólares, com dez dólares, o grande escritor com a revista
verde numa boate cara falando com uma loura empoada e contando à
grande loura sobre um dia mais glorioso. Tinha ela lido “Carissima
Mia”, escrito por Arturo Bandini? Não, então que pena. E lera
“Mea Culpa”, de Arturo Bandini? Sim, havia lido. Estranho, porque
nunca fora escrita. Mas cinco dólares e dez dólares, saídos da
poeira do Colorado, para ajudar o filhinho da mamãe, mea culpa, mea
culpa, mea maxima culpa.
Um
livro repleto de pessoas, pessoas selvagens e poeirentas. A Los
Angeles real, Bunker Hill, aquela parte da cidade abaixo de Figueroa,
e Arturo Bandini sonhando com grandes dias. As pessoas que cruzaram
seu caminho: Marcus, o vendedor de vinho, que me deu um emprego de
ajudante de garçom porque achava que eu escrevia seriados para o
SatEvePost. A sra. Adolphe Lang, com seus seios gordos e
rosados, que oferecia a mim porque ela era a mãe de Deus e eu
deveria compartilhar do leite da vida. David Myers, o comunista na
esquina de Third e Hill, com sua perna aleijada, na qual guardava os
cigarros de maconha que vendia. As velhas senhoras que eram as
Eleitas de Deus e tinham de fazer sacrifícios com o Sangue do
Cordeiro, mas não tinham nenhum cordeiro, por isso mataram um belo
gato siamês. O negro gordo que levou Camilla e eu por um beco longo
e sinistro até a Central Avenue e, subindo umas escadas caindo aos
pedaços até um quarto num hotel deserto onde homens e mulheres
jaziam como mortos, e o negro gordo os jogou para fora da cama,
cortando o colchão e nos vendendo maconha tirada da fenda. Depois,
em meu quarto, nós fumamos a maconha. Um cigarro, nenhum efeito.
Dois. O quarto escurece. O corpo de Arturo levita. Ele se alça do
chão, dois centímetros, cinco. Subindo, subindo e, oh, mundo
absurdo, absurda Camilla, e Arturo ria e ria, mas não Camilla, sua
boca amaciando, saliva branca como fios de seda agarrada a sua boca
atrevida, abrindo-se ternamente para dizer seu nome, Arturo, Arturo.
Sim e amém. Grandiosidade. Jesus, que romance! As duas lésbicas
tocando piano no Embassy, tocando valsas de Strauss para Camilla
enquanto Arturo fica furioso e cospe cerveja sobre o piano e nos
cabelos da violinista. Os pintores bêbados no estúdio do andar
acima, os tristes pintores, os pintores sem esperança, escola de S.
McDonald Wright, último vestígio de um movimento de pintura a unir
Leste e Oeste. As centenas de clubes noturnos sórdidos de Lower
Fifth Street, apinhados de belas mulheres, garotas escrevendo para
suas casas em Iowa e Indiana que estavam brilhando na grande cidade,
céus, elas não estavam brilhando, elas estavam fodendo qualquer um
e qualquer coisa, filipinos, japoneses e negros num lugar saturado de
beldades. Ah, aqueles clubes noturnos, onde aprendi a divagar e a
vagabundear, às vezes com dinheiro de outro conto vendido, às vezes
quebrado, frequentemente pedindo dinheiro emprestado a garotas.
A
caixa de esmolas na igreja do velho Plaza, da qual roubei sessenta
centavos, porque estava pobre, não estava? O salão de danças
filipino onde a polícia deu uma batida em busca de drogas, os tiras
entrando, as luzes apagando, e os tiras gritando e lutando loucamente
na escuridão e os calmos filipinos esgrimindo navalhas afiadas com a
velocidade de metralhadoras e cortando em iscas os rostos dos
policiais.
John
Fante, in A grande fome: Contos (1932-1959)
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