Mefítico.
O fedor vem dos cadáveres, do lixo e dos excrementos que se amontoam
além dos Círculos Oficiais Permitidos, para lá dos Acampamentos
Paupérrimos. Que não me ouçam designar tais regiões pelos
apelidos populares. Mal sei o que me pode acontecer. Isolamento,
acho.
Tentaram
tudo para eliminar esse cheiro de morte e decomposição que nos
agonia continuamente. Será que tentaram? Nada conseguiram. Os
caminhões, alegremente pintados de amarelo e verde, despejam mortos,
noite e dia. Sabemos, porque tais coisas sempre se sabem. É assim.
Não
há tempo para cremar todos os corpos. Empilham e esperam. Os esgotos
se abrem ao ar livre, descarregam, em vagonetes, na vala seca do rio.
O lixo forma setenta e sete colinas que ondulam, habitadas, todas. E
o sol, violento demais, corrói e apodrece a carne em poucas horas.
O
cheiro infeto dos mortos se mistura ao dos inseticidas impotentes e
aos formóis. Acre, faz o nariz sangrar em tardes de inversão
atmosférica. Atravessa as máscaras obrigatórias, resseca a boca,
os olhos lacrimejam, racha a pele. Ao nível do chão, os animais
morrem.
Forma-se
uma atmosfera pestilencial que uma bateria de ventiladores possantes
procura inutilmente expulsar. Para longe dos limites dos oikoumenê,
palavra que os sociólogos, ociosos, recuperam da antiguidade, a fim
de designar o espaço exíguo em que vivemos. Vivemos?
Virei-me
assustado. Adelaide nunca tinha dado um grito em trinta e dois anos
de casados. Treze para as oito. Em quatro minutos deveria estar no
ponto, ou perderia o S-7.58, minha condução autorizada. Estranho,
ela sabia. E por que então resolvia me atrasar ainda mais?
– O
que foi?
– O
paletó! Esqueceu?
– Não
aguento esse paletó. Passo o dia suando.
– Mas
sem ele não te deixam trabalhar.
–
Tomara.
Adelaide
me olhou, arisca. Inquieto, encarei o rosto dela e me perguntei.
Pergunta que não tenho coragem de enfrentar. Se eu admitir, ela se
desvenda. Toma forma, cristaliza, revela. Será que depois de tantos
anos compensa ver? Reagir agora? E se valesse a pena?
Tomávamos
o café da manhã juntos, todos os dias. Depois ela me acompanhava
até a porta. Eu colocava o chapéu (voltou o seu uso), acariciava
seu ombro esquerdo (nem sei mais se há prazer nisto) e consultava o
relógio. Ficava angustiado se não estivesse dentro do horário.
– Olha
a neblina, está baixa. Vai esquentar muito.
Cada
dia, a neblina desce. Quando envolver tudo, vamos suportar? Seis
meses atrás, pairava no espaço como a cúpula de uma catedral
gigantesca. O mormaço rescalda a cidade, inflama a gente. Às vezes,
a neblina some, fica o fedor que dá ânsias de vômito. A cabeça
arde.
–
Conseguiu dormir?
– Com
as sirenes tocando a noite inteira?
– Era
alarme de roubo?
–
Incêndio. Me deixa com os nervos
estourados. A falta de sono até aguento. Mas os alarmes me
perturbam.
– Não
chega o calor infernal durante o dia? Ainda tem incêndio à noite?
– Está
tudo ressecado.
–
Lembra-se daquele tempo em que os galões
de gasolina estouravam? Os prédios ardiam sem parar? Havia um
depósito em cada casa, logo depois do nefasto período de
Racionamentos Incríveis.
Trouxe
o paletó cinza. Tecido sintético que impermeabiliza. Não deixa
passar calor, anunciaram. Nada. Igual à casimira. Me abafa. Vi sobre
a mesa os calendários sendo empilhados, ela estava retirando das
paredes. Puxa! Hoje deve ser 5 de janeiro. O que me interessa?
Os
calendários desta casa permanecem sempre no primeiro do ano. O 1
vermelho, fraternidade universal. O vermelho desbota, torna-se rosado
ao fim do ano. Todos os dias, Adelaide limpa. Horas e horas tirando o
pó das folhinhas, na sala, cozinha, quarto. Ansiosamente.
O
1 eterno. Não é preciso marcar o tempo, basta abandoná-lo,
ela me disse uma vez. De que adianta saber que dia é hoje? As horas,
sim, são importantes. O dia é bem dividido. Cada hora uma coisa
certa. Melhor viver um dia só, sem fim. O que tiver de acontecer, é
dentro dele.
Agora
me dou conta. Não parecia coisa dela. Mulher quieta, ex-escriturária
de estrada de ferro. Nunca falava. Aceitava as coisas e só mostrava
irritação calando-se e coçando em baixo dos olhos. O lugar coçado
tornava-se enrugado e os olhos alongavam-se, como os de uma japonesa.
No
começo do ano, recolhia os calendários, fazia um pacote com
papel-pardo. No dia 5, ao sair, pedia: “Não se esqueça do papel”.
Repetiu, trinta e dois anos. Nunca me lembrava, ela jamais se
esquecia. Dizia a frase, irremediavelmente, ao nos despedirmos, treze
para as oito.
A
substituição dos calendários era automática no dia 5 de janeiro.
Pela manhã, Adelaide retirava-os. Nesse dia, eu não ficava na
cidade, voltava na hora do almoço. Depois de comer, sempre me
deitava um pouco. Mas, agora, o quarto abafado e o suor não me
deixam dormir.
Mesmo
assim, fico no quarto. Ao sair, vejo os novos calendários no lugar.
E, sobre a mesa, o embrulho de papel-pardo. Devo levá-lo ao antigo
quarto de empregada, amontoá-lo junto com os outros. Ali estão
empilhadas pela ordem as folhinhas dos últimos trinta e dois anos.
Ignácio
de Loyola Brandão, in Não verás país nenhum
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