Ouvi
numa canção de Rock uma frase poética que dizia assim: Não quero
uma segunda chance. Mesmo que me seja dada uma segunda vida, quero
novamente a mesma primeira chance.
Pois
é. Não tive o talento de compor esses versos, mas foi sempre assim
que repensei minha vida. Gostaria de uma segunda vida, não de uma
segunda chance. Até porque gostaria de ter os mesmos amigos para
amar e os mesmos inimigos para desprezar. O mesmo lugar de
nascimento, a mesma origem e a mesma família bocó da primeira vez.
Os
mesmos mofumbos para me esconder e o mesmo jardim da casa da minha
avó. Os mesmos medos para vencer e os mesmos sonhos inalcançáveis.
As mesmas molecas que pari e os mesmos paridos delas.
Nem
o cinzento da seca eu quero diferente, pois só assim a chuva se faz
desejo.
As
mesmas dores, para exercitar a tática de vencê-las. Os mesmos
atropelos, para afiar o gume de superá-los. E mesmo sem vencer umas
ou superar outros, não peço suavidade neles, mas a chance de ter de
novo a mesma primeira chance.
Arrependimentos,
não. Que é coisa de cristão. E só fui cristão na infância, por
indução irresistível. Autocrítica, nem tanto, que é coisa de
marxista; e eu o fui, na mocidade, por influência da ingenuidade.
Mesmo
assim quero Cristo de novo e novamente Marx, na nova primeira chance.
Grandes figuras que nasceram na humanidade errada, ou na
pré-humanidade. Ambos deformados pelas seitas paridas dos seus
nomes. Nem Cristo era cristão nem Marx foi marxista.
Alguns
livros nem abriria, dormiriam antes da primeira leitura. Outros a
serem abertos, poucos; pois a vida merece mais vida do que leitura.
Não escrever antes dos quarenta, para só renegar a escrita aos
sessenta. E rasgar meia página de cada página escrita. E da meia
página salva, deixar exposto apenas o último parágrafo.
Apoiar
todas as campanhas contra a bebida alcoólica, acompanhado de uma
cerveja gelada; para dar testemunho da irresistível hipocrisia.
Diminuir o estoque e agradar aos abstêmios.
Aprender
todas as rezas de afugentar visagens; durante a noite, e esquecê-las
ao amanhecer. Ganhar do jumento a paciência e o tamanho do pau.
Invejar por admiração e nunca por despeito.
Olhar
de chã e igualdade para os humildes, ombro a ombro. Olhar de serra
pra grota, de cima pra baixo, os poderosos. Os falsos ou fáceis
arrogantes. Não perder a oportunidade de um peido na presença
deles.
Manter
distância higiênica do poder. Cuja força esmorece na própria
vulnerabilidade. O poder atrai bajulante como mosquito em manga
podre. Movediços e siameses.
Manter
reclusão na democracia e acender revolta na ditadura. A democracia é
uma ditadura alegre. Tão mentirosa quanto. Lutar por eleições e
depois votar nulo.
Peço
ao infinito surdo uma segunda vida quase do jeito da primeira vez.
Numa nova e mesma primeira chance.
Françoise
Silvestre, in www.blogs.portalnoar.com
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