sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

A casa marinha

O que o homem tem do pássaro é inveja. Saudade é o que o peixe sente da nuvem.
Eram falas de Tiane Kumadzi, o velho que vivia fora do juízo, apartado da gente, longe da aldeia. Eu seguia-o enquanto ele desperdiçava pegadas na areia da praia. Meus pais muito me proibiam aquelas divagabundagens.
Esse tipo não regulamenta bem. Você está proibido.
Que ele era o indevido indivíduo. E somavam-me: esse tipo anda a apanhar as lenhas de uma grande desgraça. Pois o futuro o que é? Se nem temos palavra na nossa materna língua para nomear o porvir. O futuro, meu filho, é um pais que não se pode visitar.
Mas eu não resistia a seguir os passos molhados de Kumadzi quando ele, manhãs cedinho, procurava sinais do além-mundo. Acontecia na subluminosidade quando o sol nos deitava em sombras sobre as ondas.
O desremediado velho se dezembrava assim, para cá e para diante, todo concurvado enquanto pronunciava indecifráveis rezas. Me divertia aquele renhenhar dele, cabeça abaixo dos ombros, remexendo algas, conchas e troncos trazidos pelo mar de longínquas tempestades.
Eu o seguia calado, morto por saber os enfins daquela busca. Me apetecia aquela companhia como se Tiane fosse mais menino que eu, parceiro de minha meninagem.
Quantos anos tenho? Sou igual como você...
E dizia: uma criança é um homem que se dá licença de voar. Às vezes me mandava correr, passar o sem-fim da praia. Que eu devia voltar sem nenhum fôlego.
Ganhe vantagem do cansaço, filho. Há uma sabedoria do cansaço.
O cansaço é um modo do corpo ensinar a cabeça. Assim dizia Tiane. Que havia sentidos que só o cansaço despertava. Sono e fadiga: mãos que nos abrem janelas para o mundo. Fosse por esse cansaço que ele encontrava na praia aquilo que ninguém mais ousava. Certa vez, quebrei o peito e lhe atirei a pergunta:
Mas procuramos o quê, vovô Tiane?
Isto.
E atirou-me um pedaço de madeira. Era um pau a modos que nunca vira: acertados os cantos com as arestas, corrigidos os redondos da madeira e as asperezas da casca. Me admirei: em que terra cresciam árvores desse formato, tão gostosas de alisar o dedo?
Mas o que é isto avô?
Procuras-me mais istos e te deixo espreitar na minha casa.
Não fiz segunda coisa nos dias seguintes. Enquanto restasse fiapo de claridade eu afadigava os olhos a farejar mais estranhos objetos. Fazia o que ele me recomendava: me cansava pelas dunas, à procura da sapiência da fadiga.
Ao fim do dia, meus pés escamavam de tanto aguarem. Meus braços se contentavam ao peso de tantas madeirinhas. O velho Kumadzi juntava-as no seu quintal, no mesmo lugar onde, nas casas dos outros, se empilhava a lenha. Pela noite, o velho se dedicava a dar sentido àquele desordenado monte. Estudava cada um dos paus. Ajustando os encaixes, entrância na reentrância, foi construindo um barco cheio de dimensões.
Os pescadores se espantaram — um barco? Aquilo mais parecia era uma casa. E se chegaram, espetando no sossego do velho o gume da curiosidade:
Quem lhe ensinou a fazer uma coisa que não existe?”
Kumadzi encolheu os ombros. Ele não sabia mas o adivinho já pressentia. Aquilo era casa que anda na água, obra de homens— peixe, gente de aspecto nunca visto. E o adivinho juntava terríveis premonições: vinham aí tempos de cinza e fogo.
É melhor que esses nunca venham, é melhor que nunca cheguem.
E somou sentença: era urgente matar a viagem dos forasteiros. E logo ali se executou mandança: nessa noite se deitaria fogo na forasteira construção. Todos saíram. Fiquei apenas eu dando encosto à solidão do velho. Passaram-se densos silêncios até que Tiane Kumadzi me pediu que o ajudasse a empurrar o barco até à água. Nem beliscámos centímetro. O navio estava mais encalhado que árvore. Kumadzi desofegou:
Tu, miúdo, meta-se no barco!”
Apontei para mim, em espanto. Eu? O velho confirmou: eu devia era navegar, sair por esses mares para ir ter com os esses que chegavam. E completou:
Assim não haverá quem tenha vaidade de encontrar quem...
Me escusei. Dei volta ao momento e desandei pelo escuro. Reconheci razão dos conselhos da aldeia: o velho sofria o castigo de visitar de mais o futuro. Regressei a casa e deparei com estranha agitação. Meu pai comandava furiosa multidão. Vendo-me chegar, ele me ordenou: — Vai donde que vieste!
E levaram-me em diante da raiva e gritaria. Se dirigiam ao lugar de Tiane Kumadzi. O meu velho me empurrava para cá e para nenhum lado. Nem tive tempo de acertar vistas com ideias. Já o barco ardia, engolido por mil tochas, chamas chamando chamas.
Num instante, tresvoaram espessas fuligens. Eu via os fumos subirem e comporem estranhas figuras, monstros de engolir mundos. Eu fechava os olhos mas as visões não se afastavam. Ainda escutei uma voz dizer para meu pai: — Cuidado, mano, esses fumos estão cheios de veneno!
Fosse ou não veneno: as gentes se descompunham, embriagadas. Primeiro, deram gritos, saltos e danças. Aos poucos, se instalou a festa e a alegria enrijeceu a restante noite. Até os corpos lençolarem a terra.
Na manhã seguinte, o braço do velho Tiane me acordou. Primeira coisa que vi foi o barco. Esse mesmo que ardera horas prévias. Mas ali estava ele, intacto, com todo o formato. Algumas chamuscadelas, mais nada. O velho antecedeu minha pergunta:
Não chegou de arder, a madeira estava molhada.
Nas mãos tinha um naco de madeira meio ardida. Esfarelou a cinza, misturou a areia. E acrescentou: — Esse barco estava cheio de mar!”
Percorreu as escassas cinzas como que a confirmar a presença de qualquer coisa já vista. Perguntava-se, nervoso:
Onde está, onde está?”
Finalmente, se debruçou a apanhar uma taça feita de madeira. Levantou-a nos braços. Me aproximei. Aquilo não era simples objeto de usar. Desenhos de enfeitar se inscreviam em belezas. Tiane acenou a taça e proclamou:
Viu? O mar quer juntar as pessoas.
Estendeu a taça e pediu-me que bebesse. Beber o quê?, perguntei. Espreitei o redondo da taça e havia gotas. De cacimbo, adiantou Tiane para aplacar meu receio. Levei a taça aos lábios mas não consegui beber. Improvisei desculpa: — Vou guardar isto, para beber com eles...
Escondi a taça por baixo do velho canhoeiro. De novo, fomos à rebentação ao encalço dos sinais dos homens-peixe. O velho se deixou ficar dentro de água. Era já noite e ele se recusou a sair. Disse que nunca mais voltaria para terra. Ficava ali a encharcar-se de mar. Queria semelhar-se com o barco, a madeira ensopada? Quando houvesse viagem já ele se converteria em madeira salgada. Já ele se convertera em casa marinha à espera dos que haveriam de vir.
Mia Couto, in Contos de nascer a Terra

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