O
que o homem tem do pássaro é inveja. Saudade é o que o peixe sente
da nuvem.
Eram
falas de Tiane Kumadzi, o velho que vivia fora do juízo, apartado da
gente, longe da aldeia. Eu seguia-o enquanto ele desperdiçava
pegadas na areia da praia. Meus pais muito me proibiam aquelas
divagabundagens.
— Esse
tipo não regulamenta bem. Você está proibido.
Que
ele era o indevido indivíduo. E somavam-me: esse tipo anda a apanhar
as lenhas de uma grande desgraça. Pois o futuro o que é? Se nem
temos palavra na nossa materna língua para nomear o porvir. O
futuro, meu filho, é um pais que não se pode visitar.
Mas
eu não resistia a seguir os passos molhados de Kumadzi quando ele,
manhãs cedinho, procurava sinais do além-mundo. Acontecia na
subluminosidade quando o sol nos deitava em sombras sobre as ondas.
O
desremediado velho se dezembrava assim, para cá e para diante, todo
concurvado enquanto pronunciava indecifráveis rezas. Me divertia
aquele renhenhar dele, cabeça abaixo dos ombros, remexendo algas,
conchas e troncos trazidos pelo mar de longínquas tempestades.
Eu
o seguia calado, morto por saber os enfins daquela busca. Me apetecia
aquela companhia como se Tiane fosse mais menino que eu, parceiro de
minha meninagem.
—
Quantos anos tenho? Sou igual como
você...
E
dizia: uma criança é um homem que se dá licença de voar. Às
vezes me mandava correr, passar o sem-fim da praia. Que eu devia
voltar sem nenhum fôlego.
— Ganhe
vantagem do cansaço, filho. Há uma sabedoria do cansaço.
O
cansaço é um modo do corpo ensinar a cabeça. Assim dizia Tiane.
Que havia sentidos que só o cansaço despertava. Sono e fadiga: mãos
que nos abrem janelas para o mundo. Fosse por esse cansaço que ele
encontrava na praia aquilo que ninguém mais ousava. Certa vez,
quebrei o peito e lhe atirei a pergunta:
— Mas
procuramos o quê, vovô Tiane?
— Isto.
E
atirou-me um pedaço de madeira. Era um pau a modos que nunca vira:
acertados os cantos com as arestas, corrigidos os redondos da madeira
e as asperezas da casca. Me admirei: em que terra cresciam árvores
desse formato, tão gostosas de alisar o dedo?
— Mas
o que é isto avô?
—
Procuras-me mais istos e te deixo
espreitar na minha casa.
Não
fiz segunda coisa nos dias seguintes. Enquanto restasse fiapo de
claridade eu afadigava os olhos a farejar mais estranhos objetos.
Fazia o que ele me recomendava: me cansava pelas dunas, à procura da
sapiência da fadiga.
Ao
fim do dia, meus pés escamavam de tanto aguarem. Meus braços se
contentavam ao peso de tantas madeirinhas. O velho Kumadzi juntava-as
no seu quintal, no mesmo lugar onde, nas casas dos outros, se
empilhava a lenha. Pela noite, o velho se dedicava a dar sentido
àquele desordenado monte. Estudava cada um dos paus. Ajustando os
encaixes, entrância na reentrância, foi construindo um barco cheio
de dimensões.
Os
pescadores se espantaram — um barco? Aquilo mais parecia era uma
casa. E se chegaram, espetando no sossego do velho o gume da
curiosidade:
— Quem
lhe ensinou a fazer uma coisa que não existe?”
Kumadzi
encolheu os ombros. Ele não sabia mas o adivinho já pressentia.
Aquilo era casa que anda na água, obra de homens— peixe, gente de
aspecto nunca visto. E o adivinho juntava terríveis premonições:
vinham aí tempos de cinza e fogo.
— É
melhor que esses nunca venham, é melhor que nunca cheguem.
E
somou sentença: era urgente matar a viagem dos forasteiros. E logo
ali se executou mandança: nessa noite se deitaria fogo na forasteira
construção. Todos saíram. Fiquei apenas eu dando encosto à
solidão do velho. Passaram-se densos silêncios até que Tiane
Kumadzi me pediu que o ajudasse a empurrar o barco até à água. Nem
beliscámos centímetro. O navio estava mais encalhado que árvore.
Kumadzi desofegou:
— Tu,
miúdo, meta-se no barco!”
Apontei
para mim, em espanto. Eu? O velho confirmou: eu devia era navegar,
sair por esses mares para ir ter com os esses que chegavam. E
completou:
— Assim
não haverá quem tenha vaidade de encontrar quem...
Me
escusei. Dei volta ao momento e desandei pelo escuro. Reconheci razão
dos conselhos da aldeia: o velho sofria o castigo de visitar de mais
o futuro. Regressei a casa e deparei com estranha agitação. Meu pai
comandava furiosa multidão. Vendo-me chegar, ele me ordenou: — Vai
donde que vieste!
E
levaram-me em diante da raiva e gritaria. Se dirigiam ao lugar de
Tiane Kumadzi. O meu velho me empurrava para cá e para nenhum lado.
Nem tive tempo de acertar vistas com ideias. Já o barco ardia,
engolido por mil tochas, chamas chamando chamas.
Num
instante, tresvoaram espessas fuligens. Eu via os fumos subirem e
comporem estranhas figuras, monstros de engolir mundos. Eu fechava os
olhos mas as visões não se afastavam. Ainda escutei uma voz dizer
para meu pai: — Cuidado, mano, esses fumos estão cheios de veneno!
Fosse
ou não veneno: as gentes se descompunham, embriagadas. Primeiro,
deram gritos, saltos e danças. Aos poucos, se instalou a festa e a
alegria enrijeceu a restante noite. Até os corpos lençolarem a
terra.
Na
manhã seguinte, o braço do velho Tiane me acordou. Primeira coisa
que vi foi o barco. Esse mesmo que ardera horas prévias. Mas ali
estava ele, intacto, com todo o formato. Algumas chamuscadelas, mais
nada. O velho antecedeu minha pergunta:
— Não
chegou de arder, a madeira estava molhada.
Nas
mãos tinha um naco de madeira meio ardida. Esfarelou a cinza,
misturou a areia. E acrescentou: — Esse barco estava cheio de mar!”
Percorreu
as escassas cinzas como que a confirmar a presença de qualquer coisa
já vista. Perguntava-se, nervoso:
— Onde
está, onde está?”
Finalmente,
se debruçou a apanhar uma taça feita de madeira. Levantou-a nos
braços. Me aproximei. Aquilo não era simples objeto de usar.
Desenhos de enfeitar se inscreviam em belezas. Tiane acenou a taça e
proclamou:
— Viu?
O mar quer juntar as pessoas.
Estendeu
a taça e pediu-me que bebesse. Beber o quê?, perguntei. Espreitei o
redondo da taça e havia gotas. De cacimbo, adiantou Tiane para
aplacar meu receio. Levei a taça aos lábios mas não consegui
beber. Improvisei desculpa: — Vou guardar isto, para beber com
eles...
Escondi
a taça por baixo do velho canhoeiro. De novo, fomos à rebentação
ao encalço dos sinais dos homens-peixe. O velho se deixou ficar
dentro de água. Era já noite e ele se recusou a sair. Disse que
nunca mais voltaria para terra. Ficava ali a encharcar-se de mar.
Queria semelhar-se com o barco, a madeira ensopada? Quando houvesse
viagem já ele se converteria em madeira salgada. Já ele se
convertera em casa marinha à espera dos que haveriam de vir.
Mia
Couto, in Contos de nascer a Terra
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