Quando
Nina completou cinco anos de idade seu pai lhe ensinou a jogar
xadrez. Não que esperasse fazer dela um daqueles gênios russos que
passam a vida diante de um tabuleiro, não, sua intenção era outra,
menos concreta e, talvez, bem mais difícil de ser alcançada. O
xadrez, de forma lúdica e simples, a ajudaria a compreender os
rudimentos daquilo que, segundo as palavras do pai, seria o seu mais
valioso legado: o pensamento lógico. Veja bem, ele dizia, este é o
peão, o peão só é capaz de andar uma casa para a frente, a não
ser na primeira jogada, que permite um deslocamento de duas casas,
agora, para capturar alguma peça, você o movimenta na diagonal,
entendeu? Ela fazia que sim com a cabeça, ele continuava, já o
bispo se movimenta somente na diagonal, podendo deslocar-se quantas
casas o jogo lhe permitir, está claro?, ela continuava concordando,
apesar de intuir que sua compreensão das peças e respectivas
funções manteria para sempre algumas inconsistências fundamentais.
Para
o pai de Nina, o pensamento lógico era uma espécie de
salvo-conduto. É que ele, homem racional e sistemático, sempre
esteve convencido de que as mulheres, devido aos hormônios ou algum
outro aspecto misterioso de sua constituição, teriam uma clara
tendência à loucura e a todo tipo de irracionalidade. Tratava-se,
assim, de uma educação profilática. Além da loucura (ataques de
choro, desmaios, chiliques), deveria prevenir todo tipo de fraqueza
teórico-existencial: esoterismos, crendices, rezas, possessões, e
qualquer outra manifestação de religiosidade. E o currículo
incluía não apenas o xadrez, mas também aulas de lógica,
evolução, cosmologia, história antiga e noções de filosofia. Sem
falar no vigoroso treinamento físico (mens sana in corpore sano),
que consistia em longas caminhadas na areia da praia e exercícios de
natação em alto-mar.
A
lógica, porém, não era a única preocupação, havia o que talvez
fosse o maior interesse de seu pai: a ciência. A ciência explicaria
e salvaria o mundo de todos os males: da miséria, da loucura, dos
terremotos, da crise econômica, das ditaduras, e principalmente da
ignorância. Nina era capaz de lembrar com detalhes o dia em que ele,
decidido a iniciar de forma abrangente e sistemática a sua educação
científica, apareceu trazendo a enciclopédia Mirador. Eram vinte
volumes, acompanhados de dois dicionários e uma bíblia. Num
primeiro impulso pensou em descartar imediatamente a bíblia,
contudo, depois de alguns minutos de reflexão, concluiu que talvez
fosse bom mantê-la em casa, assim vigiariam o inimigo de perto,
consultariam suas incoerências e poderiam, depois, com conhecimento
de causa, reduzi-lo a cinzas numa série de argumentações
irrefutáveis.
A
partir de então, todos os dias, quando chegava do trabalho, e antes
do jantar, sentava-se com a filha à mesa e dizia, muito bem, vejamos
o que a Mirador nos reserva para o dia de hoje. A Mirador era
bastante eclética, e lhes reservava os temas mais variados, Grécia
antiga, sociolinguística, Guerras Napoleônicas, evolução dos
mamíferos, o Big Bang. Com o primeiro volume da enciclopédia aberto
em cima da mesa, ele explicava: o universo não é criação de um
ser superior ou divino, como gostariam os religiosos, mas apenas uma
massa que surgiu do nada. O universo é uma massa, ele repete, e faz
uma pausa diante da cara de espanto de Nina, talvez para realçar a
importância do que dizia. Originalmente muito densa, com
temperaturas inimagináveis, que com o passar do tempo foi perdendo
calor, e, por isso, se expandindo. Não um universo estático criado
em seis ou sete dias, mas um universo em constante expansão, aliás,
o universo continua se expandindo, e em algum momento se extinguirá.
Nessa altura do discurso, Nina lançava-lhe um olhar apreensivo, o
que seria deles, da casa, do cachorro, e até mesmo das enciclopédias
Mirador quando o universo se extinguisse. Bom, quando isso acontecer,
a humanidade já terá desaparecido da face da Terra há bilhões de
anos. Estaremos todos no céu?, Nina sugeria não muito segura da sua
hipótese, o pai dava uma gargalhada, claro que não, que ideia mais
absurda, não existe céu. Não?, as palavras saíam num fiozinho de
voz. Claro que não, isso é coisa de gente ignorante, de quem tem
medo de aceitar as coisas como são, a gente morre e acabou, pronto,
não há nada depois, nem corpo, nem pensamento, nem céu, nem
inferno, nem Jesus Cristo, nem madre Teresa de Calcutá. Não há
nada. Absolutamente nada. A gente morre e fim.
Carola
Saavedra, in O inventário das coisas ausentes
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