Como
já disse, a teoria antropomórfica do mundo revelou-se absurda
diante da moderna biologia — o que não quer dizer, naturalmente,
que um dia a tal teoria será abandonada pela grande maioria dos
homens. Ao contrário, estes a abraçarão à medida que ela se
tornar cada vez mais duvidosa. De fato, hoje, a teoria antropomórfica
ainda é mais adotada do que nas eras de obscurantismo, quando a
doutrina de que o homem era um quase-Deus foi no mínimo aperfeiçoada
pela doutrina de que as mulheres eram inferiores. O que mais está
por trás da caridade, da filantropia, do pacifismo, da “inspiração”
e do resto dos atuais sentimentalismos? Uma por uma, todas estas
tolices são baseadas na noção de que o homem é um animal glorioso
e indescritível, e que sua contínua existência no mundo deve ser
facilitada e assegurada. Mas esta ideia é obviamente uma estupidez.
No que se refere aos animais, mesmo num espaço tão limitado como o
nosso mundo, o homem é tosco e ridículo. Poucos bichos são tão
estúpidos ou covardes quanto o homem.
O
mais vira-lata dos cães tem sentidos mais agudos e é infinitamente
mais corajoso, para não dizer mais honesto e confiável. As formigas
e abelhas são, de várias formas, mais inteligentes e engenhosas;
tocam para a frente seus sistemas de governo com muito menos
arranca-rabos, desperdícios e imbecilidades. O leão é mais bonito,
digno e majestoso. O antílope é infinitamente mais rápido e
gracioso. Qualquer gato doméstico comum é mais limpo. O cavalo,
mesmo suado do trabalho, cheira melhor. O gorila é mais gentil com
seus filhotes e mais fiel à companheira. O boi e o asno são mais
produtivos e serenos. Mas, acima de tudo, o homem é deficiente em
coragem, talvez a mais nobre de todas as qualidades. Seu pavor mortal
não se limita a todos os animais do seu próprio peso ou mesmo da
metade do seu peso — exceto uns poucos que ele degradou por
cruzamentos artificiais —, seu pavor mortal é também daqueles da
sua própria espécie — e não apenas de seus punhos e pés, mas
até de suas risotas.
Nenhum
outro animal é tão incompetente para se adaptar ao seu próprio
ambiente. A criança, quando vem ao mundo, é tão frágil que, se
for deixada sozinha por aí durante dias, infalivelmente morrerá, e
essa enfermidade congênita, embora mais ou menos disfarçada depois,
continuará até a morte. O homem adoece mais do que qualquer outro
animal, tanto em seu estado selvagem quanto abrigado pela
civilização. Sofre de uma variedade maior de doenças e com mais
frequência. Cansa-se ou fere-se com mais facilidade. Finalmente,
morre de forma horrível e geralmente mais cedo. Praticamente todos
os outros vertebrados superiores, pelo menos em seu ambiente
selvagem, vivem e retêm suas faculdades por muito mais tempo. Mesmo
os macacos antropóides estão bem à frente de seus primos humanos.
Um orangotango casa-se aos sete ou oito anos de idade, constrói uma
família de setenta ou oitenta filhos, e continua tão vigoroso e
sadio aos oitenta quanto um europeu de 45 anos.
Todos
os erros e incompetências do Criador chegaram ao seu clímax no
homem. Como peça de um mecanismo, o homem é o pior de todos;
comparados com ele, até um salmão ou um estafilococo são máquinas
sólidas e eficientes. O homem transporta os piores rins conhecidos
da zoologia comparativa, os piores pulmões e o pior coração. Seus
olhos, considerando-se o trabalho que são obrigados a desempenhar,
são menos eficientes do que o olho de uma minhoca; o Criador de tal
aparato ótico, capaz de fabricar um instrumento tão cambeta,
deveria ser surrado por seus fregueses. Ao contrário de todos os
animais, terrestres, celestes ou marinhos, o homem é incapaz, por
natureza, de deixar o mundo em que habita [1919 (N. T.)]. Precisa
vestir-se, proteger-se e armar-se para sobreviver. Está eternamente
na posição de uma tartaruga que nasceu sem o casco, um cachorro sem
pelos ou um peixe sem barbatanas. Sem sua pesada e desajeitada
carapaça, torna-se indefeso até contra as moscas. E Deus não lhe
concedeu nem um rabo para espantá-las.
Vou
chegar agora a um ponto de inquestionável superioridade natural do
homem: ele tem alma. É isto que o separa de todos os outros animais
e o torna, de certa maneira, senhor deles. A exata natureza de tal
alma vem sendo discutida há milhares de anos, mas é possível falar
com autoridade a respeito de sua função. A qual seria a de fazer o
homem entrar em contato direto com Deus, torná-lo consciente de Deus
e, principalmente, torná-lo parecido com Deus, Bem, considere o
colossal fracasso desta tentativa. Se presumirmos que o homem
realmente se parece com Deus, somos levados à inevitável conclusão
de que Deus é um covarde, um idiota e um pilantra. E, se presumirmos
que o homem, depois de todos esses anos, não se parece com Deus,
então fica claro imediatamente que a alma é uma máquina tão
ineficiente quanto o fígado ou as amígdalas, e que o homem poderia
passar sem ela, assim como o chimpanzé, indubitavelmente, passa
muito bem sem alma.
Pois
é este o caso. O único efeito prático de se ter uma alma é o de
que ela infla o homem com vaidades antropomórficas e
antropocêntricas — em suma, com superstições arrogantes e
presunçosas. Ele se empertiga e se empluma só porque tem alma — e
subestima o fato de que ela não funciona. Assim, ele é o supremo
palhaço da criação, o reductio ad absurdum da natureza animada.
Não passa de uma vaca que acredita dar um pulo à Lua e organiza
toda a sua vida sobre esta teoria. É como um sapo que se gaba de
combater contra leões, voar sobre o Matterhorn ou atravessar o
Helesponto. No entanto, é esta pobre besta que somos obrigados a
venerar como uma pedra preciosa na testa do cosmos. É o verme que
somos convidados a defender como o favorito de Deus na Terra, com
todos os seus milhões de quadrúpedes muito mais bravos, nobres e
decentes — seus soberbos leões, seus ágeis e galantes leopardos,
seus imperiais elefantes, seus fiéis cães, seus corajosos ratos. O
homem é o inseto a que nos imploram, depois de infinitos problemas,
trabalho e despesas, reproduzir.
H.
L. Mencken, in O livro dos insultos
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