Marcelo sentiu alguma coisa acariciar
a sua perna por baixo da mesa. Lentamente, do calcanhar até atrás
do joelho. O pé da Ana Luiza, só podia ser. Ana Luiza estava
sentada do seu lado esquerdo, o lado da perna acariciada. Só ela
podia alcançar a sua perna com seu pé sem se esticar. A Julinha,
sentada na sua frente, teria que estender a perna ao ponto de quase
desaparecer debaixo da mesa. E, mesmo, a Julinha era sua mulher. Por
que ela faria aquilo? Era o pé da Ana Luiza, não havia dúvida. E
se não fosse? Podia ter sido o gato. O rabo do gato. Difícil
confundir um rabo de gato com um pé subindo por baixo da sua calça,
mas a alternativa era aceitar que a Ana Luiza, logo a Ana Luiza,
estava acariciando a sua perna. O gato era preferível, o gato seria
um alívio. A Ana Luiza acariciando a sua perna, depois de todos
aqueles anos, inauguraria tanta coisa diferente e surpreendente na
vida deles todos, dele, da Julinha, do Alemão, marido da Ana Luiza,
seu companheiro no tênis, sentado à sua direita, que precisava ser
o gato. O gato, rezou Marcelo, em silêncio. Por favor, o gato. Não
o pé da Ana Luiza. Não o pé da mulher do Alemão, seu melhor
amigo. Qualquer coisa menos o pé da Ana Luiza. Um fantasma e não o
pé da Ana Luiza! Marcelo olhou para Ana Luiza. Ela estava falando
com a Julinha. Ela não é feia, pensou Marcelo. Nunca notara os seus
seios. Mesmo na praia, nunca notara os seios altos e cheios da mulher
do Alemão. Altos, cheios e juntos, como ele gostava. Cinco para a
uma em vez de quinze para as três, como os da Julinha. Tentou se
lembrar das pernas da Ana Luiza. Eram curtas, tinha quase certeza que
eram curtas. Ela não conseguiria alcançar sua perna com o pé. Não
sem se esticar por baixo da mesa. Fora o gato. Estava resolvido. Fora
o gato. “Que fim levou o Clodovil?”, perguntou. Clodovil era o
nome do gato. “No veterinário”, disse o Alemão. Pronto, não
era o gato. Era o pé da Ana Luiza. A Ana Luiza está a fim. De uma
hora para outra, depois de o quê? Doze, quinze anos de amizade, a
Ana Luiza está me dizendo com o pé que está a fim de mim. Que
depois de todos estes anos quer trocar a amizade por outra coisa, um
caso, uma loucura. Que precisamos nos encontrar, longe do Alemão e
da Julinha. Que nossas vidas mudarão por completo. Que adeus
parceria no tênis. Que adeus temporadas na praia, quando as crianças
se entendiam tão bem. Que adeus jantares alternados na casa de um e
do outro casal, quando o Alemão cozinhava. Nunca mais as excursões
de fim de semana. Nunca mais as noitadas de buraco e risadas. Meu
Deus, nunca mais a costela marinada do Alemão! Marcelo sentiu o pé
da Ana Luiza acariciando sua perna outra vez. Chutou o pé da Ana
Luiza. “Sua costela está melhor do que nunca, Alemão”, disse
Marcelo para o amigo. “Se desmanchando. Se desmanchando!”
Luís Fernando Veríssimo, em A mesa voadora
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