Meia hora depois apeava-se Félix de
um tílburi à porta de uma casa no Rocio. Subiu lentamente as
escadas; a porta do fundo estava aberta; Félix deu uma volta pelo
interior da casa, e foi até à sala, sem que o sentisse uma moça,
que estava assentada perto da janela, com o rosto voltado para a rua.
— Cecília! disse ele. A moça
estremeceu e voltou-se.
— Ah! és tu. Tão tarde!
Félix aproximou-se, deu-lhe um beijo,
e tirou-lhe o livro da mão.
— Tarde? disse ele folheando o
livro; não pôde ser mais cedo; tive visitas em casa.
A moça contentou-se com a resposta;
levantou-se e pondo-lhe os braços à roda do pescoço, perguntou:
— Jantas hoje com alguém?
— Janto lá em casa.
— Lá em casa? repetiu ela; e por
que não cá em casa?
— Não posso.
— Tens visitas?
— Não.
— Jantas só?
— Janto.
— Preferes isso à minha companhia?
murmurou enfim a moça com voz triste.
— Cecília, respondeu Félix dando à
voz toda a doçura compatível com a rigidez da sua resolução, há
circunstâncias que me obrigam a não jantar cá nem hoje nem nunca.
Cecília empalideceu. Félix procurou
tranquilizá-la dizendo que ia explicar-se melhor. Insensível às
suas palavras, foi ela sentar-se no sofá e aí permaneceu alguns
instantes silenciosa. Félix deu alguns passos na sala, aspirou as
flores que tinham sido postas numa jarra, naquele mesmo dia, talvez
para recebê-lo melhor; acendeu um charuto, e foi sentar-se em frente
de Cecília. A moça fitou nele os olhos úmidos de lágrimas.
Depois, como se os lábios tivessem medo de romper uma cratera à
chama interior, murmurou estas palavras:
— E por que nunca mais?
— Cecília, disse o doutor deitando
fora o charuto apenas encetado, eu tenho a infelicidade de não
compreender a felicidade. Sou um coração defeituoso, um espírito
vesgo, uma alma insípida, incapaz de fidelidade, incapaz de
constância. O amor para mim é o idílio de um semestre, um curto
episódio sem chamas nem lágrimas. Há seis meses que nos amamos;
por que perderás tu o dia em que começa o ano novo, se podes também
começar uma vida nova?
Cecília não respondeu; fitava nele
os olhos, que, se eram ternos e buliçosos nas horas de alegria, eram
naquele momento sombrios e profundos. Félix pegou-lhe na mão.
Estava fria
— Não fiques abatida; o que faço
agora não é novidade; ouviste-me dizermuita vez que a nossa afeição
era um capítulo curto. Rias então de mim; fazias mal, porque era
alimentar uma esperança vã.
— Era, interrompeu Cecília com voz
trêmula; reconheço agora que era. Esperava, com efeito, que eu
pudesse, com a minha constância, resgatar os erros que me pesavam na
consciência. Agarrei-me a ti como a uma tábua de salvação; a
tábua não compreendeu que salvaria uma vida e deixa-se levar pela
onda que a arrebata das minhas mãos. Enganei-me. Não te faço
recriminações; espero que me farás justiça…
— Faço-te toda a justiça,
redarguiu ele; acuso-me eu mesmo de estar abaixo do papel de
redentor.
Cecília não prestou atenção ao tom
irônico destas palavras, nem sequer as ouviu. Levantou-se, deu
alguns passos, encostou-se ao piano e pondo a cabeça entre as mãos
soluçou à vontade. Mas essa explosão foi quase silenciosa e durou
pouco.
Meia hora depois despedia-se Félix de
Cecília, declarando-lhe que saía dali como um gentleman, e
que ela receberia os meios necessários para viver até que o
esquecesse de todo.
Cecília recusou esse ato de
generosidade. Espantou-o imensamente tamanho desinteresse; concluiu
que ela teria algum amor em perspectiva.
Saiu.
Na Rua do Ouvidor encontrou o Doutor
Meneses, jovem advogado com quem entretinha relações.
— Vem jantar comigo, disse.
— Não jantas com Cecília?
— Acabei o capítulo; Cecília está
livre.
— Houve choro?
— O choro pertence ao cerimonial da
separação. Era indispensável. Cecília verteu algumas lágrimas,
que eu procurei enxugar, prometendo-lhe os meios de viver algum
tempo. Recusou; mas eu não lhe aceito a recusa.
— Fizeste mal em separar-te dela;
Cecília amava-te.
— Meneses, disse Félix, eu nunca
faço mal quando quebro uma cadeia: liberto-me.
— Talvez tenhas razão…
— Mas vem jantar comigo, continuou
Félix, dando-lhe o braço.
— Não posso, vou jantar com minha
mãe.
— Ah!
— São apenas duas horas; passearei
contigo até às três. Ou vais para casa?
— Não.
Deram o braço e desceram a rua.
— Se não é indiscrição, Félix,
disse Meneses ao cabo de alguns minutos, houve algum arrufo sério
entre vocês?
— Não.
— Desconfiavas dela?
— Também não.
— Nem te arrufaste, nem tinhas
desconfiança. Sei que ela gostava de ti, e tu mesmo me afirmaste que
não era nenhuma desperdiçada. Havia portanto um milheiro de razões
para que vocês prosseguissem neste romance. Dar-se-á que tenhas em
vista algum casamento?
Félix riu-se e levantou os ombros.
— Então, não compreendo, concluiu
Meneses.
— Eu te digo, respondeu Félix; os
meus amores são todos semestrais; duram mais que as rosas, duram
duas estações. Para o meu coração um ano é a eternidade. Não há
ternura que vá além de seis meses; ao cabo desse tempo, o amor
prepara as malas e deixa o coração como um viajante deixa o hotel;
entra depois o aborrecimento — mau hóspede.
Menezes ouviu as palavras de Félix
com os olhos postos no chão; sorriu ligeiramente quando ele acabou.
— Queres ouvir uma coisa? Perguntou.
— Dize.
— O teu cinismo parece-me hipocrisia
— Não é hipocrisia nem cinismo; é
temperamento.
— Não creio.
— Por quê?
Meneses não respondeu.
— Quase me arrependo de ser teu
amigo, disse ele depois de algum tempo.
— És meu amigo? perguntou Félix
com ar de mofa.
Meneses parou e encarou o companheiro.
— Duvidas?
— Não duvido; mas ignorava isso até
agora; sabes que as nossas relações datam de pouco tempo.
— Que importa o tempo? Há amigos de
oito dias e indiferentes de oito anos.
— Há.
A conversa tomou outra direção.
Meneses ainda tentou falar da moça, mas Félix não lhe prestou
atenção. Às 3 horas separaram-se, Félix para as Laranjeiras,
Meneses para o Rocio.
Meneses era uma boa alma, compassiva e
generosa. Tinha em flor todas as ilusões da juventude; era
entusiasta e sincero; estava totalmente limpo da menor eiva de
cálculo. Podia ser que com os anos perdesse algumas das suas
qualidades nativas, que nem todos resistem a estes dois terríveis
dissolventes: os lances da fortuna e o atrito dos caracteres. Mas
naquele tempo ainda não era assim.
A situação de Cecília tinha-o
comovido. Resolveu ir ter com ela.
Cecília ficara resignada, mas triste.
Quando Meneses entrou na sala estava ela ao piano, tinha apoiada a
cabeça em uma das mãos, e corria os dedos pelo teclado. Contou-lhe
tudo o que se passara; confessou que não esperava a súbita mudança
de Félix; que a sua dor fora imensa, e que daria tudo para fazer
reviver o recente passado; mas que não nutria nenhuma esperança de
reconciliação.
— E se eu tentar fazer alguma coisa?
— Tentará em vão, respondeu ela.
Além de que, eu não tenho nenhum direito de prolongar uma
felicidade incompatível com a vontade dele. Errei, confiando demais;
errarei se tiver ainda uma esperança…
— Quem sabe, Cecília? disse o moço,
pondo-lhe a mão no ombro; é possível que Félix tenha cedido a um
capricho. Virá a arrepender-se depois, mas o seu orgulho não lhe
deixará dar o primeiro passo. Nesse caso uma pessoa influente pode
convencê-lo de que a primeira glória é a reparação dos
erros.Cecília levantou os ombros; foi a sua única resposta. Meneses
perguntou se haveria alguma razão de ciúmes. — Posso jurar-lhe
que durante todo este tempo pertenci-lhe exclusivamente. O juramento
de Cecília não devia valer muito aos olhos de um homem que
conhecesse bem todos os recursos de uma mulher naquelas condições.
Mas o nosso Meneses era ingênua em coisas tais. Saiu de lá cheio de
piedade. Nessa mesma tarde mandou uma carta às Laranjeiras,
justamente na ocasião em que Félix acabava de ler outra carta de
Cecília. A carta da moça era tranqüila e até certo ponto nobre.
Não lhe fazia nenhuma recriminação, nem implorava nenhum favor.
Defendia-se apenas, retirando de si a responsabilidade da separação.
A carta de Meneses era cavalheiresca: descobria o estado de alma de
Cecília e não hesitava em chamar ingrato ao prófugo dardânio.
Félix sorriu lendo ambas as missivas; depois atirou-as a uma cesta e
nunca mais as viu.
Machado de Assis, em Ressurreição

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