Sequioso de escrever um poema que
exprimisse a maior dor do mundo, Poe chegou, por exclusão, à ideia
da morte da mulher amada. Nada lhe pareceu mais definitivamente
doloroso. Assim nasceu “O corvo”: o pássaro agoureiro a repetir
ao homem sozinho em sua saudade a pungente litania do “nunca mais”.
Será esta a maior das solidões?
Realmente, o que pode existir de pior que a impossibilidade de
arrancar à morte o ser amado, que fez Orfeu descer aos Infernos em
busca de Eurídice e acabou por lhe calar a lira mágica? Distante,
separado, prisioneiro, ainda pode aquele que ama alimentar sua paixão
com o sentimento de que o objeto amado está vivo. Morto este, só
lhe restam dois caminhos: o suicídio, físico ou moral, ou uma fé
qualquer. E como tal fé constitui uma possibilidade - que outra
coisa é a Divina comédia para Dante senão a morte de Beatriz? -
cabe uma consideração também dolorosa: a solidão que a morte da
mulher amada deixa não é, porquanto absoluta, a maior solidão.
Qual será maior então? Os grandes
momentos de solidão, a de Jó, a de Cristo no Horto, tinham a
exaltá-la uma fé. A solidão de Carlitos, naquela incrível imagem
em que ele aparece na eterna esquina no final de Luzes da cidade,
tinha a justificá-la o sacrifício feito pela mulher amada. Penso
com mais frio n'alma na solidão dos últimos dias do pintor
Toulouse-Lautrec, em seu leito de moribundo, lúcido, fechado em si
mesmo, e no duro olhar de ódio que deitou ao pai, segundos antes de
morrer, como a culpá-lo de o ter gerado um monstro. Penso com mais
frio n'alma ainda na solidão total dos poucos minutos que terão
restado ao poeta Hart Crane, quando, no auge da neurastenia, depois
de se ter jogado ao mar, numa viagem de regresso do México para os
Estados Unidos, viu sobre si mesmo a imensa noite do oceano imenso à
sua volta, e ao longe as luzes do navio que se afastava. O que se
terão dito o poeta e a eternidade nesses poucos instantes em que
ele, quem sabe banhado de poesia total, boiou a esmo sobre a negra
massa líquida, à espera do abandono?
Solidão inenarrável, quem sabe
povoada de beleza... Mas será ela, também, a maior solidão? A
solidão do poeta Rilke, quando, na alta escarpa sobre o Adriático,
ouviu no vento a música do primeiro verso que desencadeou as Elegias
de Duino, será ela a maior solidão?
Não, a maior solidão é a do ser que
não ama. A maior solidão é a do ser que se ausenta, que se
defende, que se fecha, que se recusa a participar da vida humana. A
maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si
mesmo, e que não dá a quem pede o que ele pode dar de amor, de
amizade, de socorro. O maior solitário é o que tem medo de amar, o
que tem medo de ferir e de ferir-se, o ser casto da mulher, do amigo,
do povo, do mundo. Esse queima como uma lâmpada triste, cujo reflexo
entristece também tudo em torno. Ele é a angústia do mundo que o
reflete. Ele é o que se recusa às verdadeiras fontes da emoção,
as que são o patrimônio de todos, e, encerrado em seu duro
privilégio, semeia pedras do alto da sua fria e desolada torre.
Vinicius de Moraes, em Para viver um grande amor
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