E
haverá um dia conhecido do Senhor que não será dia nem noite, e na
tarde desse dia aparecerá a luz.
(Zacarias,
XIV, 7)
Da
flor de vidro restava somente uma reminiscência amarga. Mas havia a
saudade de Marialice, cujos movimentos se insinuavam pelos campos —
às vezes verdes, também cinzentos. O sorriso dela brincava na face
tosca das mulheres dos colonos, escorria pelo verniz dos móveis,
desprendia-se das paredes alvas do casarão. Acompanhava o trem de
ferro que ele via passar, todas as tardes, da sede da fazenda. A
máquina soltava fagulhas e o apito gritava: Marialice, Marialice,
Marialice. A última nota era angustiante.
— Marialice!
Foi
a velha empregada que gritou e Eronides ficou sem saber se o nome
brotara da garganta de Rosária ou do seu pensamento.
— Sim,
ela vai chegar. Ela vai chegar!
Uma
realidade inesperada sacudiu-lhe o corpo com violência. Afobado,
colocou uma venda negra na vista inutilizada e passou a navalha no
resto do cabelo que lhe rodeava a cabeça.
Lançou-se
pela escadaria abaixo, empurrado por uma alegria desvairada. Correu
entre aleias de eucaliptos, atingindo a várzea.
Marialice
saltou rápida do vagão e abraçou-o demoradamente:
— Oh,
meu general russo! Como está lindo!
Não
envelhecera tanto como ele. Os seus trinta anos, ágeis e lépidos,
davam a impressão de vinte e dois — sem vaidade, sem ânsia de
juventude.
Antes
que chegassem a casa, apertou-a nos braços, beijando-a por longo
tempo. Ela não opôs resistência e Eronides compreendeu que
Marialice viera para sempre.
Horas
depois (as paredes conservavam a umidade dos beijos deles), indagou o
que fizera na sua ausência.
Preferiu
responder à sua maneira:
— Ontem
pensei muito em você.
A
noite surpreendeu-os sorrindo. Os corpos unidos, quis falar em Dagô,
mas se convenceu de que não houvera outros homens. Nem antes nem
depois.
As
moscas de todas as noites, que sempre velaram a sua insônia, não
vieram.
Acordou
cedo, vagando ainda nos limites do sonho. Olhou para o lado e, não
vendo Marialice, tentou reencetar o sono interrompido. Pelo seu
corpo, porém, perpassava uma seiva nova. Jogou-se fora da cama e
encontrou, no espelho, os cabelos antigos. Brilhavam-lhe os olhos e a
venda negra desaparecera.
Ao
abrir a porta, deu com Marialice:
— Seu
preguiçoso, esqueceu-se do nosso passeio?
Contemplou-a
maravilhado, vendo-a jovem e fresca. Dezoito anos rondavam-lhe o
corpo esbelto. Agarrou-a com sofreguidão, desejando lembrar-lhe a
noite anterior. Silenciou-o a convicção de que doze anos tinham se
esvanecido.
O
roteiro era antigo, mas algo de novo irrompia pelas suas faces. A
manhã mal despontara e o orvalho passava do capim para os seus pés.
Os braços dele rodeavam os ombros da namorada e, amiúde,
interrompia a caminhada para beijar-lhe os cabelos. Ao se aproximarem
da mata — termo de todos os seus passeios — o sol brilhava
intenso. Largou-a na orla do cerrado e penetrou no bosque.
Exasperada, ela acompanhava-o com dificuldade:
— Bruto!
Ó bruto! Me espera!
Rindo,
sem voltar-se, os ramos arranhando o seu rosto, Eronides desapareceu
por entre as árvores. Ouvia, a espaços, os gritos dela:
— Tomara
que um galho lhe fure os olhos, diabo!
De
lá, trouxe-lhe uma flor azul.
Marialice
chorava. Aos poucos acalmou-se, aceitou a flor e lhe deu um beijo
rápido. Eronides avançou para abraçá-la, mas ela escapuliu,
correndo pelo campo afora.
Mais
adiante tropeçou e caiu. Ele segurou-a no chão, enquanto Marialice
resistia, puxando-lhe os cabelos.
A
paz não tardou a retornar, porque neles o amor se nutria da luta e
do desespero.
Os
passeios sucediam-se. Mudavam o horário e acabavam na mata. Às
vezes, pensando ter divisado a flor de vidro no alto de uma árvore,
comprimia Marialice nos braços. Ela assustava-se, olhava-o
silenciosa, à espera de uma explicação. Contudo, ele guardava para
si as razões do seu terror.
O
final das férias coincidiu com as últimas chuvas. Debaixo de
tremendo aguaceiro, Eronides levou-a à estação.
Quando
o trem se pôs em movimento, a presença da flor de vidro revelou-se
imediatamente. Os seus olhos se turvaram e um apelo rouco
desprendeu-se dos seus lábios.
O
lenço branco, sacudido da janela, foi a única resposta. Porém os
trilhos, paralelos, sumindo-se ao longe, condenavam-no a irreparável
solidão.
Na
volta, um galho cegou-lhe a vista.
Murilo Rubião, em Obra Completa
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