terça-feira, 7 de janeiro de 2025

Grande Rei, a tua sorte…


[…]
Aí eis que ali, no Juajém, na última casa sozinha, na saída para o Saco-dos-Côchos, estavam todos os companheiros, por cerimônia de recongraça. — “Ara viva, Pê-Boi! Pedrão Chãbergo, velho!” Aqueles eram o Jovelino, o Martinho, João Lualino, o Zé Azougue, o Veneriano, o Hélio Dias Nemes. Pois, iam. Casa de luzinha, no campo, estavam tocando? Estavam dansando o bendengo. Todos o rodeavam, à feição de agrados: — “Amigos, ôi Pê amigo!” Pedro Orósio queria andar a fôlego, singular, com muita perna e muito braço, sem cuidando; daquela estatura de passo, nenhum com ele podia se emparelhar. — “Que é isso, gente? Tão me levando de charola? Deixa de enrolo…” Todos davam a ele a confirmação do riso. — “Vamos ir, vamos determinar…” — o Ivo Cronhco falava, o Ivo era o cabecilho. Carecia de ordem, porque tinham estado bebendo. O Martinho vinha com uma lata com comida de farofa, comia dela com uma colher. O João Lualino tocava um reco-reco. O Veneriano pegou de ir na frente. Iam índio-a-índio. Pedro Orósio regozijava de caminhar de noite, debaixo de lua.
Entremente, ia cantando. Mal e mal, tinha aprendido uns pés-de-verso, aquela cantiga do Rei não saía do raso de sua ideia. Canta que canta, até o Ivo também, de falsete. E o Veneriano, que tinha bom ouvido, acompanhava, segundando. Era bonito, era bom. Pulgapé devia de ter vindo. Ao que se podia arejar, cabeça e o corpo ganhando em levezas. Gostava daquela música. Gostava de viver.
Ao sim, tinha viajado, tinha ido até princípio de sua terra natural, ele Pedro Orósio, catrumano dos Gerais. Agora, vez, era que podia ter saudade de lá, saudade firme. Do chapadão — de onde tudo se enxerga. Do chapadão, com desprumo de duras ladeiras repentinas, onde a areia se cimenta: a grava do areal rosado, fazendo pururuca debaixo dos cascos dos cavalos e da sola crúa das alpercatas. Ou aquela areia branca, por baixo da areia amarela, por baixo da areia rosa, por baixo da areia vermelha — sarapintada de areia verde: aquilo, sim, era ter saudade! O vivido velho dos vaqueiros, gritando galope, encourados rentes, aboiando. Os bois de todo berro, marruás com marcas de unha de onça. Chovia de escurecer, trovoava, trovoava, a escuridão lavrava em fogo. E na chapada a chuva sumia, bebida, como por encanto, não deitava um lenço de lama, não enxurrava meio rego. Depois, subia um branco poder de sol, e um vento enorme falava, respondiam todas as árvores do cerrado — a caraíba, o bate-caixa, a simaruba, o pau-santo, a bolsa-de-pastor. De lua a lua. Sempre corriam as emas, os veados, as antas. Sonsa, nadava a sucurijú. Tanto o gruxo de gaviões, que voavam altos, os papagaios e araras, e a maria-branca cantava meiguinha, todo aquele arvoredo ela conhecia, simples, saía pimpã do meio das folhas verdes com um fiinho de cabelo de boi no bico. Ar assim farto, céu azul assim, outro nenhum. Uma luz mãe, de milagre. E o coração e corôo de tudo, o real daquela terra, eram as veredas vivendo em verde com o muito espelho de suas águas, para os passarinhos, mil — e o buritizal, realegre sempre em festa, o belo-belo dos buritis em tanto, a contra-sol.
Um homem chega à porta de sua casa, se rindo de si e escorrendo água, desvestia pesada a croça de fibra de palmeira bôa. E uma mulher moça, dentro de casa, se rindo para o homem, dando a ele chá de folha do campo e creme de cocos bravos. E um menino, se rindo para a mãe na alegria de tudo, como quando tudo era falante, no inteiro dos campos-gerais…
Ah, ele Pedro Orósio tinha ido lá, e lá devia de ter ficado, colhendo em sua roça num terreol — era o que de profundos dizia aquela cantiga memoriã: a cantiga do Rei e seus Guerreiros a continuar seus caminhos, encantada pelo Laudelim. — “Se bebe?” “— Toma mais não, Pê. A chega.” “— Arre!”
Em ver, que tinham medo dele. Ah, tinham! Aquele Ivo Crônhico, ranheta, coçador de costa de mão; aquele Jovelino — eh, bronho, — metade de si mesmo! Aquele Martinho… Companheiros para ele? De muxoxo… Cabeçudo como esse Crônhico: pior que se meter o freio na boca dum ruim burro. E o Veneriano pé prancho, e o focinho do Martinho, e esse João Lualino assassinador de gente, todos eles. E o Nemes? Podia algum?! Súcia…
Deveras, tinham receio. Pois não era? Um exagero de homem-boi, um homão desses, tão alto que um morro, a sobre. Assim desmarcado, pescoço que não dobrava, braços de tamanduá, inchos de músculos, aquilo era de ferro — se ele estouvava, perigava qualquer sociedade, destruía as certezas. — “Escuta, gente. Escuta, Pê. Vamos determinar…” — falou o Ivo, quando pararam. — “O quê?!” “— Pedro Bergo, você tomou demais, você está esquentado. Então, melhor, reservar com a gente sua garrucha e faca, p’ra se guardar… Evita alguma distração que você tenha…” “— Ué, faz diferença?” “— Convinhável dar. O Ivo pode ter razão, Pê…” “— Escola!…” “— Escola o quê, Pê? Doideiras…” “— A que te… Tu sabe?!” “— Nome-da-mãe, não, gente! Paz…”
— “Pois canta!” — Pedro gritou, animante. — “Escola!…” Sobre sem sim, e andado, ele se sentia, estava grave. Pê-Boi, Pê-Boi, Pê-Boi… Caminhava. Cantava forte, do Rei, com a lua, pelas estradas, dos Guerreiros, das espadas, do violão do Laudelim. Bem, agora estava ali mesmo, indo para a festa, indo para sua casa, para lá do alto do Saco-do-Campo, outras encostas da vertente. Toda aquela serra subida, cheia de grutas e sumidouros — o dos Morcegos, o da Lapinha do Geraldo, o do Brejinho, o funil da Pedra Bonita, o do Corgo do Cuba —, cheia de tratos onde ninguém pode pisar e o gavião-grande é dono. Conhecia ali, palmo e palmo, também era de muito terra dele, aqueles contornos. Toda parte, por lá, o corujão saía esvoaçado dum oco de lapa, pousava em ponta de pedra, dava gargalhadas — assim com luar a coruja branca depunha sombra. Quanta coisa que a gente não sabe nunca no escuro, sufocado: como o glude frio das minhocas da terra. Seo Alquiste soubesse? O frade sabia? Seo Jujuca? Ele Pedro Orósio tinha sua casinha — uma casinha pobre, com alpendre, entre umas palmeiras, terra bôa, de orecanga. Perto da Pedra do Boi, perto do recôncavo dos Monjolos, depois do Pasto dos Monjolos, depois do Capão do Pequí, rumo a rumo com o Limpa-Goela, onde tem o morrinho, um cruzeiro e um bananal, indo pelo espigão da Ponte-Seca… Grande Rei, a tua sorte — pode mais que o teu valor?
Pedro Orósio esbarrou. As botinas o maltratavam. Sentou no chão, se livrou. Deu ao Ivo as botinas, para levar. Grande Rei, a tua sorte… Daí, se remantelou em pé, calcou bem a terra, sapateou um tanto. Grande Rei… Tinha ido e tinha voltado, por aquelas todas fazendas — desde o Apolinário: o Marciano, no caminho das boiadas do Norte; a Nha Selena, numa belavista, fim de serra; o Nhô Hermes, na Capivara; a dona Vininha, tinha aquela moça tão alva; o Jove, donde quebra para as boiadas que vêm do Urucúia e do Abaeté… Eh, Ivo Crônhico, carrega minhas botinas! Ele, Pê, era o Rei, dono dali, daquelas faixas de matas, verdes vertentes, grandes morros, grotas cavacadas e lapas com lagôinhas, poços d’água. Mas é só baixar as ordens, que havemos de obedecer… Aí entrar outra vez dentro da Gruta, a Lapa Nova do Maquiné — onde a pedra vem, incha, e rebrilha naquelas paredes de lençóis molhados, dobrados, entre as rôxas sombras, escorrendo as lajes alvas, com grandes formas e bicos de pássaros que a pedra fez, pilhas de sacos de pedra, e o chão de cristal, semelha um rio de ondas que no endurecer esbarraram, e vindas de cima as pontas brancas, amarelas, branco-azuladas, de gelo azul, meio-transparentes, de todas as cores, rindo de luz e dansando, de vidro, de sal: e afundar naquele bafo sem tempo, sussurro sem som, onde a gente se lembra do que nunca soube, e acorda de novo num sonho, sem perigo sem mal; se sente.
Que desse as armas, por guardar, que era mais assisado — o Ivo fechou mão nisso. — “Uma osga!” Pê-Boi não queria saber de embusteria. — “Cuida das botinas, amigo, que eu quero é festa!” Queria cantar. Vieram todos de parelha… O Rei… E em eles tremeram peles… A sina do Rei é avessa… O Rei dava, que estrambelhava — à espada: dava de gume, cota e prancha… “Remeteram com a fortaleza…” Aí então os Sete matavam o Rei, à traição. Traição… Caifaz… Parecia coisa que tinha estado escutando aquilo a vida toda! Palpitava o errado. Traição? Ah, estava entendendo. Num pingo dum instante. Olhou aqueles, em redor. Sete? Pois não eram sete?! Estarreceu, no lugar. Soprou. — “Doidou, Pê? Que foi?” Traição, de morte, o dano dos cachorros! — “Pois toma, Crônhico!” — e puxou no Ivo um bofetão, com muito açoite. Estavam na ponte do Ribeirão da Onça. — “E que foi, gente? Que foi?” Ele cresceu.
Ouviu o que o Nemes e os outros gritavam:
Pega, mata logo, gente, o bruto já desconfiou! Melhor matar logo…
Aperra! Atira!
Agarra!
— “Morrer à traição? Cornos!” Foi foi uma suscitada, o Pedro se estabanando. Espera! Zape, pegou o Ivo, deu com ele no chão, e já arrependia o Martinho no parapeito, o arcou, rachou-o. E vinha no Nemes, de barba a barba com, e num desgarrão o Nemes era achatado. — “Toma, cão! Viva o Nomendomem!” Uns com os outros se embaraçando, travados, e Pê com medonhos gritos moronava por de entre eles, beligno — eh, Rei, duelador! — e mal o Lualino gambetava, quem levava o impeito era o Veneriano, despejado lá em baixo, nos poços, e a cabeça do Zé Azougue sucedia como um ovo debaixo dum martelo, e o Lualino fugia longe, numa raspada, o Jovelino caçava de se esconder, o Ivo gritava! E Pedro Orósio, num a-direita, pisava o Jovelino, metia o pé; o Ivo gemia, não aguentava o agarre. Os outros, não havia mais. Então Pê-Boi suspendeu o Ivo no ar, vencilhado, seguro pelo cós, e tirou da bainha a serenga, e refou nele uma sova, a pano de facão, por sobra de obra. Daí, trouxe a cara do Ivo a olho, esse tremia, fino, fino. E quase tornado a si de sua surreição, Pedro Orósio se recompunha, menos exato, perto de rir. Conforme ainda perguntou:
Que foi, Crônhico?
— “Perdão… Perdão…” — o Ivo mal gemia, em desgovernos, e apertava fechados os olhos. Pê-Boi riu:
Terei matado algum? — perguntou, balançando o Ivo mansamente. — Cachaças…
Mas o Ivo agora arregalava os olhos, e tanto tremia, mole e sujo, que nem uma coisa, bichinho, um papa-coco ou um mocó. Com asco, com pena, então o depositou, o depôs, menino, no centro do chão.
Daí, com medo de crime, esquipou, mesmo com a noite, abriu grandes pernas. Mediu o mundo. Por tantas serras, pulando de estrela em estrela, até aos seus Gerais.

Guimarães Rosa, em O recado do morro

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