sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Pitiu

José Estanislau de Castro Vinhas, esse era o seu nome. Seu magnífico sobrenome já se encontrava nos almanaques que citei, prova de que ele era dorense de muitas gerações. Mas ninguém o conhecia pelo nome. Ele era o Pitiu. Rosto de profeta, longa barba grisalha, chapéu, gravata, paletó de três botões, todos abotoados, botas, esporas e um guarda-chuva. Aparecia montado na sua égua de cheiro bom. Era de casa. Chegava na casa da tia América — ah! Como eu gostaria que a tia América tivesse sido minha avó! Ela era mansa e gostava de crianças! Sua insuperável habilidade culinária eram os pastéis. Quando ela fazia pastéis, bacias cheias, a notícia corria rápida entre os primos: “Tia Merca ta dano pastel!”. O Pitiu chegava, não batia à porta, puxava o barbante e entrava pela casa. De verdade, ele era um da casa.
Você não entendeu o barbante que se puxava? Explico. Não se tinha medo. Todo mundo era bem-vindo. As casas estavam abertas a quem quisesse. Em algumas casas a confiança era tanta que para facilitar as coisas amarrava-se um barbante no trinco da fechadura, no lado de dentro, que era passado por um orifício na porta e ficava pendente do lado de fora. Não era preciso bater. Era só puxar o barbante e entrar gritando “Ô de casa! Ô de casa!”.
Havia um ar de mistério em torno do Pitiu. Morava sozinho na fazenda que herdara dos antepassados. Os detalhes da sua vida cotidiana eram ignorados. Relatava-se que uma vez foi visto de noite, assentado no pasto, encostado num cupim, lendo um jornal que iluminava com uma vela. Pode ser verdade, pode não ser. O povo inventa muito.
Mas algo aconteceu que rompeu a placidez e a monotonia da vida do Pitiu. Os viajantes que chegavam de jardineira traziam notícias assombrosas. A revolução estava em marcha. Tinha até aviões jogando bombas nas cidades. Os paulistas, armados até os dentes, se aproximavam com toda a sua malvadeza e braveza. Não se sabia aquilo de que seriam capazes! O medo tomou conta da cidade. Muita gente se preparou para fugir para os matos. Foi então que dentro daquele homem pacato, o Pitiu, despertou um general adormecido. Dirigiu-se ao posto telefônico e, sem pedir licença e sem pedir que a telefonista fizesse uma ligação, agarrou o telefone e começou a berrar ordens: “Aqui é José Estanislau de Castro Vinhas. Dinamitem as pontes. Repito: dinamitem as pontes. É uma ordem”. E desligou o telefone, ante os olhos espantados da telefonista. Digam o que disserem, o fato é que funcionou: o Pitiu deu ordens a uma pessoa que não existia para que dinamitasse as pontes com uma dinamite que não existia e as tropas paulistas que não existiam foram impedidas de chegar a Boa Esperança. Passado esse episódio heroico, José Estanislau de Castro Vinhas voltou a ser o Pitiu que sempre fora. Não houve outras revoluções que exigissem a sua ação.

Rubem Alves, em O velho que acordou menino

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