Às
vezes, no calor mais forte, eu pulava de noite a janela com pés de
gato e ia deitar-me junto ao mar. Acomodava-me na areia como uma cama
fofa e abria as pernas aos alíseos e ao luar: e em breve as frescas
mãos da maré cheia vinham coçar meus pés com seus dedos de água.
Era
indizivelmente bom. Com um simples olhar podia vigiar a casa, cuja
janela deixava apenas encostada; mas por mero escrúpulo. Ninguém
nos viria nunca fazer mal. Éramos gente querida na ilha, e a afeição
daquela comunidade pobre manifestava-se constantemente em peixe
fresco, cestas de caju, sacos de manga-espada. E em breve perdia-me
naquela doce confusão de ruídos... o sussurro da maré montante,
uma folha seca de amendoeira arrastada pelo vento, o gorgulho de um
peixe saltando, a clarineta de meu amigo Augusto, tuberculoso e
insone, solando valsas ofegantes na distância. A aragem entrava-me
pelos calções, inflava-me a camisa sobre o peito, fazia-me festas
nas axilas, eu deixava a areia correr de entre meus dedos sem saber
ainda que aquilo era uma forma de cortar o tempo. Mas o tempo ainda
não existia para mim; ou só existia nisso que era sempre vivo,
nunca morto ou inútil.
Quando
não havia luar era mais lindo e misterioso ainda. Porque, com a
continuidade da mirada, o céu noturno ia desvendando pouco a pouco
todas as suas estrelas, até as mais recônditas, e a negra abóbada
acabava por formigar de luzes, como se todos os pirilampos do mundo
estivessem luzindo na mais alta esfera. Depois acontecia que o céu
se aproximava e eu chegava a distinguir o contorno das galáxias, e
estrelas cadentes precipitavam-se como loucas em direção a mim com
as cabeleiras soltas e acabavam por se apagar no enorme silêncio do
Infinito. E era uma tal multidão de astros a tremeluzir que, juro,
às vezes tinha a impressão de ouvir o burburinho infantil de suas
vozes. E logo voltava o mar com o seu marulhar ilhéu, e um peixe
pulava perto, e um cão latia, e uma folha seca de amendoeira era
arrastada pelo vento, e se ouvia a tosse de Augusto longe, longe. Eu
olhava a casa, não havia ninguém, meus pais dormiam, minhas irmãs
dormiam, meu irmão pequeno dormia mais que todos. Era indizivelmente
bom.
Havia
ocasiões em que adormecia sem dormir, numa semiconsciência dos
carinhos do vento e da água no meu rosto e nos meus pés. É que
vinha-me do Infinito uma tão grande paz e um tal sentimento de
poesia que eu me entregava não a um sono, que não há sono diante
do Infinito, mas a um lacrimoso abandono que acabava por raptar-me de
mim mesmo. E eu ia, coisa volátil, ao sabor dos ventos que me
levavam para aquele mar de estrelas, sem forma e corpo e ouvindo o
breve cochicho das ondas que vinham desaguar nas minhas pernas.
Mas
– como dizê-lo? – era sempre nesses momentos de perigosa
inércia, de mística entrega, que a aurora vinha em meu auxílio.
Pois a verdade é que, de súbito, eu sentia a sua mão fria pousar
sobre minha testa e despertava do meu êxtase. Abria os olhos e lá
estava ela sobre o mar pacificado, com seus grandes olhos brancos,
suas asas sem ruído e seus seios cor-de-rosa, a mirar-me com um
sorriso pálido que ia pouco a pouco desmanchando a noite em cinzas.
E eu me levantava, sacudia a areia do meu corpo, dava um beijo de
bom-dia na face que ela me entregava, pulava a janela de volta,
atravessava a casa com pés de gato e ia dormir direito em minha
cama, com um gosto de frio em minha boca.
Vinicius de Moraes, em Para viver um grande amor
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