Senão
quando o vapor apitou e se avistou subindo o rio, aportava da Bahia
cheio de pessoas.
Mearim
viu-a e viu que de bem desde a adivinhara, estava para cada hora, por
fatalidade de certeza. Sempre de qualquer escuro ou confuso ela se
aproximava, apontada. Ele não estremeceu, provado para o silêncio e
engasgo. Se entregava a afinal — ao de Deus a acontecer.
Dez
passos, de lado, vigiava o Rijino também o vapor chegar, como os
bichos olham o fogo. Rijino inteirado se quadrava, escondendo essas
mãos de costas peludas. Mearim abaixou o rosto, com as ideias e
culpas. Se dava de cansado, no impossível de se ser ciente das
próprias ações.
Mesma,
passageira, ela, alta, saia pintada, irrevogável, bonita como uma
jiboia, os cabelos cor de égua preta.
Foi
ver, foi visto. Não adiantava ter-se soltado, deciso deixando-a, não
podia fugir para os fins da terra. Lá fez ela aceno, linda a mão de
paixão ou ameaça, porquanto o vapor zoava, as fumaças se
desenfeixando. Mearim não a abarcava — da memória, que é o que
sem arrumo há, das muitas partes da alma — a cada sete batidas um
coração discorda. Saudosa, por cheiro, tato, sabor, a voz às vezes
branda, cochicho que na orelha dele virava cócegas, no fúrio
aconchego. De repente, à má bruxa, a risada. O remorso tira essas
roupagens. A gente tem de existir — por corpo, real, continuado —
condenado. Ela chupava-lhe a respiração das ventas.
Ao
Rijino, ele bem que citara avisos, quando retornando: — “Aqui,
convém eu não ficar, o Sãofrancisco todo é alertamente...” —
temia ela viesse, pleiteava vasto socorro. Rijino duro remordia, os
dentes apertava, para nem no instante se envergonhar, o queixo
afirmado; nem a gente tem poder de se afinar nas feições. —
“Não pense na fulana...” só para a obediência. Rijino não
dava conselhos, situado positivo.
Atual
ali entanto ela estava, o vapor a entrar, recebido, por meio de
zoeira, novidade, grita, deduzido dos extremos do Juazeiro. Seguro o
Rijino pontual soubesse que um dia ela aparecia, havia de vir, com
isso ele contava, que a desunião faz as enormes forças. Ela era a
de não se desvanecer. Tudo — total, o balanço dos anos — tem
horas se percebe, ligeiro demais, lumiado se concebe. Que era que o
Rijino propositava? Ela se pertencia.
Mearim
direto a ele, mano mais velho, viera, devido o que havido, depois,
cheio de duvidar, doente de despojo. Mas no espaço das Três-Marias
o Rijino mais contudo não laborava — de uns e outros ouviu; e, a
ele mesmo, o reprovaram, lá, informadamente. Se mudara, o enganado
Rijino, sempre por aí — em rumo que Mearim tomou — o rio,
escorreito.
Topou-o
no porto. Subido da surpresa, frente a ele se propôs, faltoso e
irmão, cara à cara: — “Me mate. Errei, enxerguei, me puni.
Seja pelo leal, que não fui...” — e esperou o novo. Sem
em-de sentenciar, o Rijino fechou as mãos, em par, socava o ar,
feito o boneco tãomente. Declarou, custoso: — “Nossa mãe
essas mais lágrimas não houvera de carpir...” Se encostou,
sinaladamente envelhecera, o mais velho. Mas não estava amotinado.
Antes, tivera sabendas de que Mearim contrito a largara. Definiu: —
“Tu tivesses flagelos...”
Sincero
com afeto, quis que Mearim ali em Maria-da-Cruz parasse, onde em
fatos ganhava, com caber para companheiro. Deu a ele cama e lugar em
mesa, na casa. Lhe cedia revólver ou rifle: conforme que ninguém
prospera sem inimigos achados. Mearim entendia. Mas, o que reteve,
sentiu, ainda não pedindo perdão. Rijino imaginava em alguém
ausente — escarrava. Outramaneira por dentro devia de curtir
resumos, de tanta espécie. Dela, de Elpídia, mais nunca nada
referia, tirante o de abafo. Ia, a cada vez, exato, ficava vendo
vapores. Todo o mundo — rio-abaixo, rio-acima — acaba algum dia
passando por estes cais.
Mearim
ia, tal, também, com pena, espiava o ar aberto, ora com nojos de tão
fácil se arrepender, desmentia os pensamentos.
O
vapor manobrava em o se encostar, ela outro instante desaparecia.
Mulher de atentada vontade. Rijino a trouxera e esposara, brejeira do
Verde-Grande, quebradora de empecilhos. Do Rijino não gostou — nem
os anjos-da-guarda.
Dele,
Mearim, sim, querido, marcado, convivido. Entre o que, moço, ele
sentia, sem saber olhar: só menção de responder, amor a futura
vista. Ela fez que feliz oprimido a levasse; saídos escondidos,
levara-o, para parar em Paulo-Afonso. Meses que passar, o quanto,
despropósitos de vida. Essa ação de estar, ele acaba calcado não
aguentara: o susto, uns medos, em madrugada, desgostosura, à voz de
reprova, neste mundo tão sujeito.
Sem
hoje nem onde, então ele se escapara, para qualquer comarca. Antes
carecesse de concórdia, outras pausas, a natureza dele sendo mais
quieta. Do que agora mudava. Dela tendo saudades, certas. Somente
assim — sozinha e triste imaginada, sempre não enxergada, sua
formosura em vai-vem, a jovem dormida nas florestas.
Ela,
vem, que decidida, desastrada. E era o que o Rijino pelo jeito
aprovava. Movendo drede para isso que ele Mearim ali em Maria-da-Cruz
ficasse, para chamar atraído aquele açoite de amor. Rijino o ponto
arrumara, não temendo o que fero se gera — na separação das
pessoas. Mearim desentendia, returbado. Estimava, por dó ou grato
expor, Rijino, que dele com agarrada e estúrdia afeição cuidava,
como um pai, aborrecido, odioso. Mesmo a ela Rijino decerto notícias
enviara, a fim de que viesse, e dinheiro! Há o fechado e o aberto.
Havia.
A
hora era cedo. O povo, influído, mais se ajuntava. Esses vapores
aqui chegavam corretos no horário. Aí estavam desembarcando.
Ela,
direita — uns meninos carregando o baú e trouxas. Só via a ele,
Mearim, receava nada, os brincos balançando, tocando-lhe as faces,
vinha com a felicidade. Ele no tolhimento; acolá o Rijino; o
silêncio triplicado. Aquele perfume chegava ao sangue da gente. O
Rijino deu passo.
Rijino
em chofre segurara-a por um braço. — “Tu!” — demo,
doloroso. — “Tu, não!” — ela renitiu, os dois em
enrolamento, curto esforço. Ela puxara por um punhal, no mesmo
lance, revirava-o, isso, o chiar de água em brasas. Rijino, pafo,
caído, uma toda vez, findado. Só ela e o irremediado intervalo.
Seja como se outra, destorcido o rosto, claro, à lástima
arregalada, espiava para o alto e para o chão, por tudo o completo
cansaço.
Ela
estava ajoelhada.
Mearim,
seus olhos se abriram muito, então, brilhados, tanto destapavam. Com
que aí chegava povo, o excesso, as justiças e os soldados.
Mearim
se levantou, de ajoelhado também, o sangue respingara-o. Seu coração
entendeu. Iria, desde que enterrado o morto, à Lapa do Santuário do
Santo-Senhor-Bom-Jesus, por um perdão, pela dor de todos. Depois, a
vida dele era só aquela mulher, e mais, sofrida tida e achada, livre
ou entre grades, mas que lhe pertencia, em reprofundo, mediante amor.
Guimarães Rosa, em Tutameia
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