sábado, 12 de outubro de 2024

O mercado



Ao deixarmos a ruazinha, saímos em outra mais larga, na qual andamos bem pouco antes de entrarmos em um armazém. O espaço era grande e arejado, aberto para a rua com três enormes portas em forma de arcos que tomavam quase toda a parede da frente. O armazém já estava cheio de gente, e lá ficaram apenas os que não tinham nenhuma marca a ferro, pois tal marca indicava quem já tinha saído de África tratado de compra. Apesar de não estarem marcados, fui separada também de todos os muçurumins, e mais tarde soube que eles tinham grande valor e eram vendidos em lugares especiais. Fomos recebidos com certa alegria pelo branco que parecia ser o dono daquele local e que, ainda na rua, andou em torno de nós, apalpou nossas carnes, alisou nossas peles e provou o gosto deixado no dedo, abriu nossas bocas e olhou os dentes, e, por fim, fez sinais de aprovação. Quando entramos no armazém, percebi o motivo da felicidade, pois ele tinha um bom estoque de pretos, mas, juntando todos, não dava um de nós. Pareciam mesmo carneiros magros, bichos maltratados e doentes.
Quase todos estavam nus e eram homens e mulheres de várias idades, desde crianças de colo até idosos, todos tristes e muito diferentes dos pretos que eu tinha visto pelas ruas, sadios, fortes e, por que não dizer, alegres. Os que estavam no armazém pareciam não aguentar o peso do próprio corpo, que se resumia a quase que apenas ossos, e era por isso que permaneciam quietos o tempo todo. Em bancos encostados às paredes ficavam os mais velhos e os mais doentes, sentados ou deitados. Espalhados por todos os cantos do barracão, no chão de terra ou sobre esteiras de palha já se desmanchando, os mais jovens formavam grupos de acordo com os locais de onde tinham saído de África, o que era fácil de saber por causa das marcas nos rostos ou das línguas que falavam. As mulheres se acocoravam ao redor de fogareiros improvisados com barro e chapas de ferro que sustentavam tachos de comida. Elas olhavam, mudas, tanto para o fogo como para as vasilhas onde preparavam algo que nem de longe poderia ser chamado de refeição, apenas água onde boiavam pedaços minúsculos de verduras e ossos. Algumas crianças, magras e barrigudas, dormiam perto delas, outras estavam penduradas em peitos murchos, e outras ainda, um pouco mais velhas, brincavam de atirar pedrinhas para o ar e apanhá-las antes que tocassem o chão, como muitas vezes eu, a Taiwo e o Kokumo brincávamos em Savalu.
Os homens também formavam grupos, mais pela companhia, porque mal se falavam, deitados ou agachados, com os braços em volta dos joelhos e as cabeças enfiadas entre as pernas. O comum a todos eram os ossos, que de tão aparentes quase rasgavam a pele sem viço e sem cor definida, coberta por imensa quantidade de escaras. Tenho quase certeza de que nós também estávamos bem parecidos com eles quando desembarcamos, magros, tristes e com aparência de bichos, e nos fizeram muito bem os dias na Ilha dos Frades, ao ar livre, podendo tomar sol, tomar banho, e com comida suficiente para, além de não passarmos fome, ainda nos fartarmos com frutas, muitas que eu não conhecia e eram bem gostosas. Mais tarde, em África, senti muita falta delas. Os pretos que estavam naquele armazém provavelmente tinham ido do navio para lá, sem passar pelo período de descanso e recuperação. Ou estavam lá havia muito tempo, à espera de alguém que se interessasse por eles, não sendo cuidados por quem apenas intermediava a venda e não tratava bem de peça alheia. Na verdade, tamanho descaso fazia com que se tornassem peças que ninguém nunca ia querer.
Homens, mulheres e crianças tinham os cabelos raspados, mas alguns deixavam crescer pequenos tufos no alto da cabeça. As mulheres, na tentativa de imitar as que ficavam no porto, passavam grande parte do tempo amarrando e desamarrando lenços em volta da cabeça, enfeitados com qualquer coisa que fosse possível conseguir por ali, como palha, pedras e barro. Mas não ficavam bonitas, por mais que tentassem. Nem as crianças eram bonitas. Aliás, a única coisa que se podia perceber naqueles pretos era o ódio nos olhos de alguns deles, que até os guardas pareciam respeitar, mantendo uma distância segura. Até mesmo nós, talvez por estarmos mais bem-vestidos e mais saudáveis, fomos alvos de tais olhares. A sensação era de que a qualquer momento eles correriam todos na nossa direção e nos matariam, vingando em nós o tratamento recebido. O grupo no qual eu cheguei permaneceu unido, e ninguém conversou conosco durante um bom tempo. À noite, a temperatura esfriou e me senti desconfortável por todos aqueles que estavam nus, ou quase nus, inclusive as crianças, que choravam. Os guardas que ficavam do lado de fora das portas fechadas gritavam alguma coisa que as fazia calar, mas que eu não compreendia por não entender ainda o português.
Fiquei aliviada quando o dia amanheceu, pois tinha dormido muito mal, incomodada, com medo, mas vencida pelo cansaço provocado por emoções tão diferentes. Uma das mulheres do nosso grupo puxou conversa com outra das que já estavam no armazém, e ela disse que tinha chegado havia muito tempo e que infelizmente ninguém tinha se interessado por ela, um problema bastante comum para os que não eram vendidos logo nos primeiros dias. Quem acabava de chegar tinha a preferência por estar mais bem alimentado, e quanto mais tempo ficava ali, menores eram as chances de ser escolhido, porque a comida era pouca e irregular. Às vezes mal dava para as crianças, que tinham certas prioridades, seguindo uma norma estabelecida por eles mesmos. Mas quando a fome apertava, esqueciam até mesmo esta regra, colocavam as crianças para dormir e dividiam a comida entre os que tinham mais influência no grupo. Muitas das crianças não estavam acompanhadas de pai ou mãe, ou porque tinham viajado sozinhas, menos provável, ou porque ficaram órfãs durante a viagem, ou tinham sido separadas da família por compradores que se interessaram somente pelos adultos. A conversa atraiu outras mulheres, que estavam apenas observando, desconfiadas e curiosas para saber quando tínhamos saído da África, de que região éramos, a que tribo pertencíamos, como estava tudo por lá. Quando encontravam alguém da mesma região ou tribo, perguntavam por parentes e conhecidos, e às vezes aconteciam coincidências. Na segunda ou terceira leva anterior à nossa, havia um homem que conheceu a família de um rapaz que já estava no armazém e contou que a aldeia deles tinha sido arrasada, que os que não foram capturados estavam mortos.
Eu não sabia o motivo, mas tinha absoluta certeza de que não teria o mesmo destino que aquelas crianças, que alguém me escolheria logo e nada seria tão ruim assim, mas fiquei me perguntando se algumas delas já tinham tido o mesmo pensamento e a mesma certeza em vão. Mas elas pareciam indiferentes a tudo que acontecia ao redor, ou por estarem brincando ou por ficarem quietas a um canto, sozinhas, caladas, como se quisessem ficar invisíveis, como quando eu fechava os olhos na viagem de Savalu para Uidá e todo o mundo desaparecia.

Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor

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