sexta-feira, 11 de outubro de 2024

A Revolução dos Bichos | 2.



Daí a três noites, faleceu o velho Major, tranquilamente, durante o sono. Seu corpo foi enterrado no fundo do pomar.
Começava o mês de março. Nos três meses seguintes houve uma intensa atividade secreta. As palavras do Major haviam dado uma perspectiva de vida inteiramente nova aos animais de maior inteligência da granja. Não sabiam quando teria lugar a Rebelião predita pelo Major, nem tinham razões para acreditar que fosse durante a existência deles próprios, mas percebiam claramente o dever de aprestar-se para ela. A tarefa de instruir e organizar os outros recaiu naturalmente sobre os porcos, reconhecidos como os mais inteligentes dos bichos. Salientavam-se, entre eles, dois jovens barrões, Bola-de-Neve e Napoleão, que o sr. Jones criava para vender. Napoleão era um cachaço berkshire, de aparência ameaçadora, o único berkshire da fazenda, pouco falante, mas com a reputação de ter grande força de vontade. Bola-de-Neve era mais ativo que Napoleão, de palavra mais fácil, mais imaginoso, porém não gozava da mesma reputação quanto à solidez de caráter. Todos os demais porcos da fazenda eram castrados. Dentre estes, o mais conhecido era um porquinho gordo chamado Garganta, de bochechas redondas, olhos sempre piscando, movimentos lépidos e voz aguda. Manejava a palavra com brilho, e quando discutia algum ponto mais difícil tinha o hábito de dar pulinhos de um lado para o outro e abanar o rabicho, uma coisa bastante persuasiva. Diziam que Garganta era capaz de convencer de que preto era branco.
Esses três haviam organizado os ensinamentos do Major num sistema de pensamento a que deram o nome de Animalismo. Várias noites por semana, depois que Jones dormia, faziam reuniões secretas no celeiro e expunham aos outros os princípios do Animalismo. De início, encontraram certa apatia e muita ignorância. Alguns animais mencionavam o dever de lealdade para com Jones, a quem se referiam como o “dono”, ou emitiam comentários elementares do tipo: “O senhor Jones nos alimenta. Se ele fosse embora, nós morreríamos de fome”. Outros faziam perguntas como: “Que importa o que acontecerá depois da nossa morte?”, ou: “Se essa Rebelião virá de qualquer maneira, que diferença faz trabalharmos por ela ou não?”; e os porcos tinham grande dificuldade em fazê-los ver que isso ia contra o espírito do Animalismo. As perguntas mais estúpidas eram sempre as de Mimosa, a égua branca. A primeira pergunta que ela fez a Bola-de-Neve foi:
Ainda haverá açúcar depois da Rebelião?”
Não”, Bola-de-Neve respondeu firmemente. “Não temos meio de obter açúcar nesta fazenda. Além do mais, você não precisa de açúcar. Mas terá toda a aveia e o feno que quiser.”
E ainda vou poder usar laço de fita na crina?”, perguntou Mimosa.
Camarada”, explicou Bola-de-Neve, “essas fitas que você tanto estima são o distintivo da servidão. Não vê que a liberdade vale mais que laços de fita?”
Mimosa sempre concordava, mas não dava a impressão de estar lá muito convencida.
Muito mais ainda lutaram os porcos para neutralizar as mentiras espalhadas por Moisés, o corvo doméstico. Moisés, mascote do sr. Jones, era um espião linguarudo, mas também de boa conversa. Afirmava a existência de uma região misteriosa, a Montanha de Açúcar-Cande, para onde iam os animais após a morte. Essa montanha ficava em algum lugar no céu, pouco acima das nuvens, segundo Moisés. Na Montanha de Açúcar-Cande, os sete dias da semana eram domingos, o ano inteiro era época de trevo, e as sebes davam torrões de açúcar e bolinhos de linhaça. Os bichos detestavam Moisés, porque vivia de histórias e não trabalhava, porém alguns acreditavam na Montanha de Açúcar-Cande, e os porcos travaram grandes discussões para convencê-los de que esse lugar não existia.
Os discípulos mais fiéis eram os dois cavalos de tração, Sansão e Quitéria. Ambos tinham enorme dificuldade em pensar qualquer coisa por si próprios; todavia, aceitando os porcos como instrutores, absorviam tudo quanto lhes era dito e passavam adiante para os outros animais por simples repetição. Jamais faltavam aos encontros secretos no celeiro e davam o tom para o canto de “Bichos da Inglaterra”, que sempre encerrava as reuniões.
Afinal, a Rebelião ocorreu muito mais cedo e bem mais facilmente do que se esperava. Jones fora, no passado, um patrão duro, mas competente. Agora estava em decadência. Desestimulado com a perda de dinheiro numa ação judicial, dera para beber muito além do que devia. Às vezes passava dias inteiros recostado em sua cadeira de braços, na cozinha, lendo os jornais, bebendo e dando a Moisés cascas de pão molhadas na cerveja. Seus peões eram vadios e desonestos, o campo estava coberto de erva daninha, os galpões careciam de telhas novas, as cercas estavam caindo, e os animais tinham fome.
Junho chegou, e o feno estava quase pronto para o corte. Na véspera do solstício de verão, um sábado, Jones foi a Willingdon e bebeu tanto no Leão Vermelho que só voltou ao meio-dia de domingo. Os homens ordenharam as vacas de manhã cedo e saíram para caçar lebres, sem tratar da forragem dos animais. Ao voltar, Jones caiu dormindo no sofá da sala com o News of the World sobre o rosto; portanto, ao cair da tarde, os animais ainda não haviam comido. Aquilo já era demais. Uma das vacas rebentou a chifradas a porta do celeiro, e os bichos avançaram sobre as tulhas. Nesse momento, Jones acordou. Num átimo, ele e seus quatro peões estavam no celeiro com os chicotes na mão, batendo a torto e a direito. Isso ultrapassou tudo quanto os animais famintos podiam suportar. De comum acordo, muito embora nada fosse planejado, lançaram-se sobre seus verdugos. Jones e os homens viram-se de repente marrados e escoiceados de todo lado. A situação fugira ao controle. Nunca tinham visto os animais daquele jeito, e a súbita revolta de criaturas que eles estavam acostumados a surrar e maltratar à vontade os encheu de pavor. Em poucos instantes largaram de defender-se e deram o fora. Um minuto depois, os cinco voavam pela trilha rumo à estrada, com os bichos no encalço, triunfantes.
A mulher de Jones olhou pela janela do quarto, viu o que ocorria, juntou às pressas alguns haveres numa bolsa de pano e escapuliu da granja por outro caminho. Moisés levantou voo do poleiro e bateu asas atrás dela, grasnando. A essa altura, os animais haviam posto Jones e os peões para fora da granja, fechando atrás deles a porteira das cinco barras. E assim, antes de se darem conta, a Rebelião vencera. Jones fora expulso, e a Granja do Solar era deles.
Durante os primeiros minutos, os bichos mal puderam acreditar na sorte. Seu primeiro ato foi galopar pelos limites da granja, como a ver se nenhum ser humano ficara escondido; depois, correram de volta às casas da granja, para varrer os últimos vestígios do odiado império de Jones. O galpão dos arreios, no fundo dos estábulos, foi arrombado; freios, argolas de nariz, correntes de cachorro, as cruéis facas com que Jones castrava os porcos e os cordeiros, foi tudo atirado no fundo do poço. As rédeas, os cabrestos, os antolhos e os degradantes bornais foram jogados na fogueira que ardia no pátio. O mesmo destino tiveram os relhos. Os bichos saltaram de alegria quando viram os chicotes em chamas. Bola-de-Neve jogou também ao fogo as fitas que enfeitavam as crinas e caudas dos cavalos em dias de feira.
Fitas”, disse ele, “devem ser consideradas roupas, que são a marca do ser humano. Todos os animais têm de andar nus.”
Ao ouvir isso, Sansão foi buscar o chapeuzinho de palha que usava no verão para proteger suas orelhas das moscas, e o atirou também no fogo.
Em pouco tempo, os bichos destruíram tudo o que lhes recordava Jones. Napoleão conduziu-os de volta ao celeiro e serviu uma ração dupla de milho para todo mundo, dois biscoitos para cada cachorro. Cantaram, então, “Bichos da Inglaterra” do começo ao fim sete vezes, depois deitaram-se e dormiram como nunca.
Porém, como sempre, acordaram de madrugada, e ao lembrar-se do glorioso evento da véspera, correram para a pastagem. A pequena distância, havia um morrete donde se via quase toda a fazenda. Os animais subiram e olharam em volta, à luz clara da manhã. Sim, era deles — tudo o que enxergavam era deles! No êxtase dessa percepção, deram cambalhotas e saltos de contentamento. Rolaram no orvalho, comeram a deliciosa grama do verão, arrancaram torrões de terra e aspiraram aquele rico aroma. Depois fizeram um circuito de inspeção em toda a granja, vistoriando, com muda admiração, a lavoura, o campo de feno, o pomar, a lagoa, o arvoredo. Era como se nunca tivessem visto aquilo, e mal podiam acreditar: tudo era deles.
Voltaram, então, para as casas da granja e pararam silenciosos em frente à porta da casa-grande. Era deles também, mas ficaram com medo de entrar. Após alguns instantes, porém, Bola-de-Neve e Napoleão forçaram a porta a trancos, e os animais entraram em fila indiana, caminhando com o maior cuidado para não desarrumar nada. Andaram na ponta dos pés, de um aposento para o outro, falando baixinho e olhando com certa reverência o luxo inacreditável, as camas, os colchões de penas, os espelhos, o sofá de crina, o tapete de Bruxelas, a litografia da rainha Vitória sobre a lareira da sala de estar. Quando desciam as escadas, deram pela falta de Mimosa. Voltando, descobriram-na no quarto principal. Havia apanhado no toucador da sra. Jones um pedaço de fita azul, e segurava-o contra a espádua, admirando-se no espelho com trejeitos ridículos. Repreenderam-na acerbamente, e saíram todos. Alguns presuntos, pendurados na cozinha, foram levados para fora e enterrados; o barril de cerveja da copa foi rebentado com um coice de Sansão; além disso, nada mais foi tocado na casa. Ali mesmo aprovou-se, por unanimidade, a resolução de conservá-la como museu. Concordaram em que nenhum animal jamais deveria morar lá.
Os bichos tomaram o café da manhã e foram outra vez convocados por Bola-de-Neve e Napoleão.
Camaradas”, disse Bola-de-Neve, “são seis e quinze, e temos um longo dia pela frente. Iniciaremos hoje a colheita do feno. Mas antes, há outro assunto de que devemos tratar.”
Os porcos revelaram que, nos últimos três meses, haviam aprendido a ler e a escrever, num velho livro de ortografia que pertencera aos filhos de Jones e fora jogado no lixo. Napoleão mandou buscar latas de tinta preta e tinta branca e marchou à frente até a porteira das cinco barras, que dava para a estrada principal. Então, Bola-de-Neve (que escrevia melhor) pegou o pincel entre as juntas da pata, cobriu de tinta o nome GRANJA DO SOLAR do travessão superior e, em seu lugar, escreveu GRANJA DOS BICHOS. Seria esse o nome da granja dali em diante. Depois disso, voltaram para as casas da granja; Bola-de-Neve e Napoleão mandaram buscar uma escada e fizeram-na encostar à parede do fundo do celeiro grande. Explicaram que, segundo os estudos que haviam feito nos últimos três meses, era possível resumir os princípios do Animalismo em Sete Mandamentos. Esses Sete Mandamentos seriam agora escritos na parede, constituindo a lei inalterável pela qual a Granja dos Bichos deveria reger sua vida para sempre.
Com alguma dificuldade (pois não é fácil para um porco equilibrar-se numa escada de mão), Bola-de-Neve subiu e começou a trabalhar, enquanto Garganta, alguns degraus abaixo, segurava a lata de tinta. Os Mandamentos foram escritos na parede alcatroada em grandes letras brancas que podiam ser lidas a muitos metros de distância.
Eram os seguintes:
OS SETE MANDAMENTOS
1. Qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimigo.
2. O que andar sobre quatro pernas, ou tiver asas, é amigo.
3. Nenhum animal usará roupa.
4. Nenhum animal dormirá em cama.
5. Nenhum animal beberá álcool.
6. Nenhum animal matará outro animal.
7. Todos os animais são iguais.
Foi tudo muito bem escrito, e com exceção da palavra “álcool”, que saiu “álcol”, e de um dos S, desenhado ao contrário, a ortografia estava correta. Bola-de-Neve leu o que escrevera, em voz alta, para os demais. Todos os bichos balançaram a cabeça, de pleno acordo, e os mais atentos começaram logo a decorar os Mandamentos.
Agora, camaradas”, disse Bola-de-Neve, deixando cair o pincel, “ao campo de feno! É questão de honra fazer a colheita em menos tempo do que Jones e sua gente.”
Nesse momento, porém, as vacas, que já vinham dando sinais de inquietação, começaram a mugir. Há vinte e quatro horas não eram ordenhadas, e tinham os úberes quase estourando. Depois de alguma reflexão, os porcos pediram baldes e ordenharam as vacas razoavelmente bem, pois seus cascos adaptavam-se à tarefa. Tiraram cinco baldes de um leite espumante e cremoso, que muitos dos animais olharam com considerável interesse.
Que vamos fazer com esse leite?”, perguntou alguém.
Jones, às vezes, misturava um pouco ao nosso farelo”, disse uma galinha.
Não vos ocupeis do leite, camaradas!”, exclamou Napoleão, postando-se à frente dos baldes. “Nós trataremos desse assunto. A colheita é mais importante. O camarada Bola-de-Neve vos conduzirá. Eu irei dentro de alguns minutos. Avante, camaradas! O feno espera.”

George Orwell, em A Revolução dos Bichos

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