quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Uma tentativa de sentir

Não é para nós que o leite da vaca brota, mas nós o bebemos. A flor não foi feita para ser olhada por nós nem para que sintamos o seu cheiro, e nós a olhamos e cheiramos. A Via Láctea não existe para que saibamos da existência dela, mas nós sabemos. E nós sabemos Deus. E o que precisamos d’Ele extraímos. (Não sei o que se chama Deus, mas assim pode ser chamado.) Se só sabemos muito pouco de Deus, é porque precisamos pouco: só temos d’Ele o que fatalmente nos basta, só temos de Deus o que cabe em nós. (A nostalgia não é do Deus que nos falte, é nostalgia de nós mesmos que não somos bastante; sentimos falta de nossa grandeza impossível – meu futuro inalcançável é meu paraíso perdido.) Sofremos por ter tão pouca fome, embora nossa pouca fome já dê para sentirmos uma profunda falta do prazer que teríamos se fôssemos de fome maior. O leite a gente só bebe o quanto basta ao corpo, e da flor só vemos até onde vão os olhos e sua saciedade rasa. Quanto mais precisarmos, mais Deus existe. Quanto mais pudermos, mais Deus teremos. E Ele deixa. (Ele não nasceu para nós, nem nós nascemos para Ele, nós e Ele somos ao mesmo tempo.) Ele está ininterruptamente ocupado em ser, assim como todas as coisas estão sendo, mas não impede que a gente se junte a Ele e, com Ele, fique ocupado em ser, numa intertroca tão fluida e constante – como a de viver. Ele, por exemplo, Ele nos usa totalmente porque não há nada em cada um de nós de que Ele, cuja necessidade é absolutamente infinita, não precise. Ele nos usa, e não impede que a gente faça uso d’Ele. O minério que está na terra não é responsável por não ser usado. Nós somos muito atrasados, e não temos ideia de como se aproveita Deus numa intertroca – como se ainda não tivéssemos descoberto que o leite se bebe. Daí a alguns séculos ou daí a alguns minutos talvez digamos espantados: e dizer que Deus sempre esteve! quem esteve pouco fui eu – assim como diríamos do petróleo que finalmente precisou a ponto de saber como tirá-lo da terra, assim como um dia lamentaremos os que morreram de câncer sem usar o remédio que está. (Certamente ainda não precisamos não morrer de câncer.) Tudo está. (Talvez seres de um outro planeta já saibam das coisas, e vivam numa intertroca para eles natural; para nós, por enquanto, isso seria “santidade” e atrapalharia completamente a nossa vida.)
O leite da vaca, nós o bebemos. E se a vaca não deixa, usamos de violência. (Na vida e na morte tudo é lícito.) Com Deus a gente também pode abrir caminho pela violência. Ele mesmo, quando precisa mais especialmente de um de nós, Ele nos escolhe e nos violenta. Só que minha violência para com Deus tem que ser comigo mesma. Tenho que me violentar para precisar mais. Para que eu me torne tão desesperadamente maior que eu fique vazia e necessitada. Assim terei tocado na raiz do precisar. O grande vazio em mim será o meu lugar de existir; minha pobreza extrema será uma grande vontade. Tenho que me violentar até não ter nada, e precisar de tudo; quando eu precisar, então eu terei, porque sei que é de justiça dar mais a quem pede mais, minha exigência é o meu tamanho, meu vazio é minha medida. – Também se pode violentar Deus diretamente, através de um amor cheio de raiva. E Ele compreenderá que essa nossa avidez colérica e assassina é na verdade a nossa cólera sagrada e vital, a nossa tentativa de violentação de nós mesmos, a tentativa de comer mais do que podemos para aumentarmos artificialmente a nossa fome – na exigência de vida tudo é lícito, mesmo o artificial, e o artificial é às vezes o grande sacrifício que se faz para se ter o essencial. – Mas, já que somos pouco e portanto só precisamos de pouco, por que então não nos basta o pouco? É que adivinhamos o prazer. Como cegos que tateiam, nós pressentimos o intenso prazer de viver. E se pressentimos, é também porque nós nos sentimos inquietantemente usados por Deus, sentimos inquietantemente que estamos sendo usados com um prazer intenso e ininterrupto – aliás a nossa salvação por enquanto tem sido a de pelo menos sermos usados, não somos inúteis, somos intensamente aproveitados por Deus; corpo e alma e vida são para isso: para a intertroca e o êxtase de alguém. Inquietos sentimos que estamos sendo usados a cada instante – mas isso acorda em nós o inquietante desejo de também usar. E Ele não só deixa, como necessita ser usado, ser usado é um modo de ser compreendido. (Em todas as religiões Deus exige ser amado.) Para termos, falta-nos apenas precisar. Precisar é sempre o momento supremo. Assim como a mais arriscada alegria entre um homem e uma mulher vem quando a grandeza de precisar é tanta que se sente agonia e espanto: sem ti eu não poderia viver. A revelação do amor é uma revelação de carência – bem-aventurados os pobres de espírito porque deles é o dilacerante reino da vida.

Clarice Lispector, em Todas as crônicas

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