terça-feira, 6 de agosto de 2024

Menino do mato | IV

Lugar mais bonito de um passarinho ficar é a palavra.
Nas minhas palavras ainda vivíamos meninos do mato,
um tonto e mim.
Eu vivia embaraçado nos meus escombros verbais.
O menino caminhava incluso em passarinhos.
E uma árvore progredia em ser Bernardo.
Ali até santos davam flor nas pedras.
Porque todos estávamos abrigados pelas palavras.
Usávamos todos uma linguagem de primavera.
Eu viajava com as palavras ao modo de um dicionário.
A gente bem quisera escutar o silêncio do orvalho
sobre as pedras.
Tu bem quisera também saber o que os passarinhos
sabem sobre os ventos.
A gente só gostava de usar palavras de aves porque
eram palavras abençoadas pela inocência.
Bernardo disse que ouvira um vento quase encostadonas vestes da tarde.
Eu sonhava de escrever um livro com a mesma
inocência com que as crianças fabricam seus navios
de papel.
Eu queria pegar com as mãos no corpo da manhã.
Porque eu achava que a visão fosse um ato poético
do ver.
Tu não gostasse do caminho comum das palavras.
Antes melhor eu gostasse dos absurdos.
E se eu fosse um caracol, uma árvore, uma pedra?
E seu eu fosse?
Eu não queria ocupar o meu tempo usando palavras
bichadas de costumes.
Eu queria mesmo desver o mundo. Tipo assim: eu vi
um urubu dejetar nas vestes da manhã.
Isso não seria de expulsar o tédio?
E como eu poderia saber que o sonho do silêncio era
ser pedra!

Manoel de Barros, em Menino do mato

Nenhum comentário:

Postar um comentário