quinta-feira, 8 de agosto de 2024

I — Pablo, o intratável



No trapiche de tábuas podres, entulhado de redes, balaios, tralhas, canoas velhas e pescadores modorrentos, sob um bafo opressivo de peixe morto, Pablo coçava o cavanhaque, olhando para longe, mochila às costas. No horizonte despontava um pequeno morro — a Ilha da Paixão. É para lá que eu vou. Para aquele inferno. Todo ano é a mesma coisa. E a úlcera me comendo o estômago.
Vai pra ilha?
Desviou os olhos para o pescador sujo que sorria sem dentes, pés na água. Soltou a mochila das costas e suspirou. A simples ideia de atravessar o canal já o irritava, uma antecipação ansiosa de desgraças. O preço que iriam cobrar pelo aluguel da canoa. A chegada na ilha. Aquela invencível estranheza dos amigos, dos só conhecidos e dos desconhecidos — tudo igual. Os dois meses pagando os pecados. Talvez... O homem insistiu:
Vai pra ilha?
Não: não tem mais recuo.
Vou.
Eu posso alugar minha canoa.
Pablo preparava-se, já sentindo a sombra da pontada no estômago: uma luta desagradável de acerto de preço, como todas as vezes.
Esse caco velho aí?
Caco nada! Coisa firme.
Sei. Pago quinhentos cruzeiros. E se quiser.
Por dia?
Ah sim, era só o que faltava. Por dois meses.
Não. Assim não dá.
Começou a se irritar com a aproximação lenta, mas sólida, dos outros pescadores. Parecem abutres. Pensam que sou rico, que sou turista. O ano todo juntando dinheiro pra jogar fora em um minuto. Uma outra voz:
O senhor quer por dois meses?
É.
Eu posso levar o senhor lá.
Não. No ano passado quase me matei pra conseguir carona de volta.
Desta vez não dependeria de ninguém: um ligeiro conforto.
Eu alugo a minha por dois mil — ofereceu outro pescador.
Qual é a sua?
Aquela uma.
A canoa tinha um palmo de água no fundo.
Dois mil por essa tralha?!
Mas aguenta firme! Vai junto o remo e a lata pra tirar água.
Pablo coçava o cavanhaque. Fosse rico, alugava um barco a motor no trapiche dos grã-finos. Chegaria lá espirrando água. Pechinchou:
Pago mil e quinhentos.
O homem vacilava, rosto retalhado de rugas, orelhas grandes, cansaço. Parecia fazer contas:— O senhor garante que traz de volta?— É claro. Vou voltar como? A nado? Só não volto se afundar.— Afunda não. Faz um pouco d’água, mas não afunda.
Assim espero. E então?
O homem não se decidia, Pablo perdeu a paciência, aquela droga de canoa não valia nada:
Mil e seiscentos e pronto!
Tá bem.
Correu um burburinho de aprovação. Pablo tirou o dinheiro do bolso — eles vão ficar me olhando? — e pagou o homem, nota a nota. Sobrou quase nada. Agarrou a mochila, uma satisfação momentânea pela independência que o aluguel representava, pegou o cabo que prendia a canoa — e jogou-se nela. A canoa empinou, e água suja de camarão e peixe, acumulada no fundo, se concentrou nos seus pés, encharcando-lhe os sapatos, meias adentro, enquanto ele inteiro ameaçava desabar para a frente.
Porra!
Conseguiu se equilibrar, ouvindo as gargalhadas do trapiche. Duas remadas desesperadas, queria estar logo longe dali — o remo enterrando-se no lodo e a canoa dançando nervosa — e caiu sentado no fundo, a mochila e ele se enchendo d’água.
Merda.
Conformava-se: arregaçou as calças, tirou os sapatos, meias, camisa, atafulhando tudo na proa, junto aos restos de peixe e camarão, e começou a esvaziar a canoa em latadas frenéticas. Finalmente, sentando-se no fundo, pernas estendidas, passou a remar com todas as forças. Ainda ouvia as risadas prolongadas do trapiche — a ilha longe, teria a manhã toda a remar.
PABLO!
Fingiu não ouvir o grito: boa notícia não seria.
PABLO! PAAA... BLOOOÔ!…
Irritado, olhou para trás. Da ponta do trapiche alguém gritava, mãos em concha na boca.
PABLOOOÔ!…
É o Miro. É o porra do Miro.
PABLO! DÁ UMA CARONA! TÔ SEM DINHEIRO!
Não ia dar carona. Não vou mesmo! Vou então me matar pra levar esse pintor de bosta nas minhas costas?! Ele que vá nadando! Com maior fúria, deu cinco remadas seguidas — e parou. A voz esganiçada:
PAA... BLOÔ!
Sujeitinho explorador. Artista de bosta. Levar pra quê? Pra afundar o barco? Qualquer um vê que não cabem dois aqui. Depois, ele não vai fazer falta nenhuma.
Mas não voltou a remar. Devia deixar ele aí. Que se dane. Por que não arrumou dinheiro, como eu? Ele que alugue o barco dele.
PABLOOÔ! PABLOÔ!
Já ouvi, idiota.
Mordido por uma raiva crescente, viu-se fazendo a volta e remando em direção ao trapiche. Só pra me incomodar. Por que não chegou mais tarde, que não me encontrava mais? Sou sempre eu que tenho de ajudar os outros?
Miro — cabelão encaracolado em volta da cabeça pequena — esperava-o de braços abertos:
Pablo, que bom que você me ouviu! Que legal, cara! Te ver aqui de novo, pra outra Paixão! Vamos nessa!
Pablo quieto, Miro falando:
Gastei meu último tostão no ônibus pra cá. Se não te encontro, tava fodido. Pega a mochila pra mim.
Nas mãos de Pablo a mochila pesou duas toneladas:
Pô, a canoa não aguenta.
Guenta sim, cara. E aí, tudo bem? Me ajuda aqui.
O que é isso?
Meus últimos quadros, quer dizer, só esboço. Vou terminar na ilha. Mas, bah, cara, agora sim, acertei na cor. Depois te mostro.
Os quadros de Miro — dois metros por um e meio — estavam empacotados em jornal e papelão, amarrados com pedaços de corda e fita isolante, num todo frouxo e desengonçado. Pablo transbordava:
Porra, Miro. Assim não dá! Pra que trazer esse troço?
Miro deu uma risada gostosa:
Pablo, ah, Pablo, sempre puto da vida! A gente dá um jeitinho de levar. Segura aí.
A muito custo — sob o olhar curioso e divertido dos pescadores — puseram a coisa atravessada na proa. Miro preocupava-se:
Será que não vai molhar?
Eu quero que afunde. Vambora.
Miro tentava se ajeitar no pouco espaço restante.
Pablo, essa canoa tá toda molhada.
É claro. — Jogou a lata: — Comece a secar o barco enquanto eu remo.
Mas não tinha uma canoa melhor pra pegar?
Se eu soubesse que você viria, alugava um iate.
E lá foram eles, Pablo na popa remando, Miro no meio tirando água e segurando os quadros da proa. As risadas dos pescadores se distanciavam, e uma hora depois ouvia-se apenas o remo ritmado de Pablo, a respiração funda e a lata de Miro raspando o casco. Mar calmo, sol alto. Miro suspirou:
Cansei.
Pablo remava, bufando. Miro tocava o mar com a mão livre, olhava a paisagem, o continente longe, uma emoção gostosa:
É o maior barato isso aqui. Passei o ano pensando na ilha e na Paixão. Pablo, se você soubesse o bem que isso me faz!... Minha pintura cresceu, descobri formas, cores incríveis…
Pablo remava.
Eu era muito bloqueado, sabe? E isso se refletia nos quadros. Não me soltava. Depois, aquele encontro com a Aninha... Pô, cara, parece que eu nasci de novo. Você vai ver nos meus quadros. O ruim é que eu nunca sei quando está pronto, quando é hora de assinar o bruto. Estraguei muita tela por não saber parar. Nunca te aconteceu? Estragar alguma coisa porque a gente não sabe parar? Parece que sempre falta alguma coisa.
Pablo remava.
Mas agora eu já sei o que fazer. Vou me entocar na ilha. Nada de agitação, de farra. Chego lá, pego uma gruta das rochas do sul (Você já foi lá? É do caralho!) e fico pintando. Apareço no dia da representação, só no dia. Faço papel de homem do povo, é barbada, nem precisa ensaio. Além dessas telas, trouxe outras enroladas na mochila, ainda sem armação.
Pablo remava. Essa canoa não vai aguentar. Se der vento…
E mudei meus temas também. Aquela crise de cidade, prédios, ruas sem saída, placas, rodas, emparedamentos, isso não me interessa mais. Agora quero coisa visceral, sabe? Lá do fundo da gente. E figuras humanas: alma, corpo, físico, músculos, olhos. Finalmente aprendi a pintar olhos. O olhar da Aninha... Foi a primeira vez que descobri o olhar na pintura. Você vai ver os esboços. Quando chegar te mostro. Será que a Aninha vem esse ano?
Pablo remava. Miro insistia:
Você acha que ela vem?
Não sei.
Você não gosta dela?
Eu acho ela um monte de bosta.
Miro deu uma risada:
Pablo, você é um cara engraçado. Sempre muito na tua.
Pablo parou de remar. Passou a mão no rosto, deu uma cuspida, suspirou. Teria que suar sozinho. E remo não é pincel. Remo pesa.
Vou fumar, que não aguento mais.
Uma boa, Pablo. Me arruma um.
Estava demorando pra pedir. Abriu a mochila encharcada, tirou dois cigarros da carteira felizmente seca, a caixa de fósforos. Batia um vento leve. Deram tragadas fundas, demoradas — Miro fechava os olhos:
Que sensação gostosa... limpo, por dentro e por fora. Dois meses no paraíso, boia garantida, Aninha... mato, passarinho, gruta, beira de mar, sol…
Mosquito, comida ruim, mulherada fresca, um bando de chatos, dez horas de ensaio por dia, carregar cruz para os outros…
Emendaram uma gargalhada que se desdobrou no mar.
É isso aí, Pablo: a gente se encontra na risada.
Pablo suspirou, tentando agarrar pela ponta uma sombra de felicidade:
Miro, desta vez eu vou gostar, vou me salvar... — Mas o susto: — Vambora que vem vento!
Que vento?
Olha lá!
A ilha próxima de repente se escondia numa imensa nuvem negra, e o vento aumentava.
Mas que diabo é isso?
E esse barco não vai aguentar até o fim!
Meus quadros!
Ajoelhado, Miro abraçava o pacote dos quadros. Pablo, agora sim, ria solto:
É hoje que essa merda vai pro fundo!
O mar engrossando, Pablo remava com fúria:
Eh, desgraça de vento!
E mais ventava, as ondas jogando a canoa sem rumo. De tempos em tempos, Pablo gritava:
Segura firme, Miro!
Meus quadros vão voar!
Pablo remava com força, enquanto a canoa se enchia de água. Começou a se assustar com a tempestade inexplicável:
Larga esses quadros e esvazia a canoa!
Vou perder tudo!
Essa merda vai virar, seu filho da puta! Larga isso!
Não largo!
Eu te dou com o remo na cabeça!
Tá molhando todos meus quadros!
Não havia tempo para nada, exceto remar — e Pablo cresceu com a tempestade, digno ao vento como um conquistador, pressentindo agora que não seria desta vez o fim, a canoa misteriosamente resistia, como se planasse. Mas uma secreta sensação de derrota lhe devorava a grandeza, pequenas misérias que somadas eram um painel medonho de sofrimento. O que eu estou fazendo aqui, me danando com essa canoa furada que paguei do meu bolso, carregando um inútil com uns quadros vagabundos, pegando pneumonia no vento, com cãibras no braço de tanto remar, para ir trabalhar de graça numa Paixão que ninguém vai ver e provavelmente fazendo papel de soldado no meio de quarenta idiotas?
Aguenta aí, Pablo, que eu seguro aqui na frente!
Por que não morre afogado? De repente, a ilha apareceu inteira, enorme diante deles:
Estamos chegando!
No tempo exato: com três palmos de água, o velho casco foi ao fundo, felizmente raso — estavam na praia do trapiche, uma pequena enseada de areia branca e mar transparente.
Pablo, salvei meus quadros! — gritava Miro, arrastando a mochila na água e equilibrando o pacote na cabeça.
Me ajuda a puxar o barco, desgraçado!
Pablo suava. Depois de recolher camisa, meias e sapatos junto à mochila pendurada dolorosamente nas costas, tentava arrastar a canoa para terra firme, num esforço descomunal.
Me ajuda!…
Inútil — Miro contemplava a ilha, de joelhos na areia firme, ante a montanha verde cheia de caminhos, pedras e grutas, dunas e praias, vento e pássaros. Beijou o chão:
Terra abençoada! Você vai ver como vou te pintar, te curtir, te amar…
O céu se abriu num repente luminoso — e o sol banhou as extensões da ilha, fazendo explodir a cantoria dos pássaros nas árvores próximas. Na água, Pablo gemia:
Me ajuda!…

Cristovão Tezza, em Ensaio da Paixão

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