terça-feira, 6 de agosto de 2024

A noiva do nariz quebrado


Eles iam se casar, e não havia muito o que organizar, então foi tudo bem rápido. Em certo ponto, Michael pensou no que fazer com as obras de arte — os quadros de Abbey —, se deveria guardar, destruir ou jogar tudo fora; Penélope foi categórica.
Se eu fosse você, guardava ou vendia. Seus quadros não merecem ser destruídos. — Com delicadeza, ela tocou em uma das obras. — Nossa, ela é tão linda...
Foi quando, sem querer, ela sentiu:
Uma fagulha de ciúmes.
Por que não posso ser assim?, ela se perguntou, pensando no vasto e longínquo terreno dentro dele, onde às vezes ele se enfiava e desaparecia, bem do lado dela. Em momentos como aquele, era o que ela queria, desesperadamente — ser mais e melhor que Abbey. Mas os quadros eram evidências em vias de formação: provas de que tudo aquilo um dia já pertenceu a Abbey.
Foi um alívio, no fim das contas, quando venderam os quadros:
Expuseram uma das maiores telas em uma rotatória perto da rua Pepper, junto a um cartaz com a data do leilão, e mais tarde, ao anoitecer, roubaram a obra. O evento na garagem não durou uma hora sequer; a coleção foi embora rápido, porque as pessoas simpatizavam com elas; tanto com Abbey quanto com Penny.
Você tinha que pintar essa aqui, isso sim”, diziam muitos dos compradores, apontando para Penélope, e Michael apenas sorria.
Essa aqui é muito melhor em pessoa”, dizia.

***

O obstáculo seguinte na jornada foi fruto da típica sorte de Penélope:
Não foi exatamente obra do destino — foi mais falta de discernimento —, mas só poderia ter acontecido quando aconteceu: na manhã antes do casamento. Ela fez a curva na rua Lowder para pegar a estrada Parramatta, no velho sedan de Michael.
Ela nunca chegou a pegar no volante no Bloco do Leste, mas seu olhar estava treinado para conduzir na pista oposta. Aqui, ela fez autoescola, passou com relativa tranquilidade e volta e meia dirigia o carro de Michael. Jamais tivera problemas, mas, naquele dia, isso pouco importou. Ela fez uma curva perfeita à direita, porém na pista errada.
No banco de trás estava o modesto e esvoaçante vestido de noiva que ela havia acabado de buscar, e o carro foi atingido na lateral, como se um demônio tivesse tirado um naco com uma mordida. Penélope fraturou as costelas. Seu nariz foi deslocado, quebrado; o rosto atingira o painel.
O homem do outro carro só fazia xingar, mas parou assim que viu o sangue.
Ela se desculpou em duas línguas.

***

Logo chegou a polícia, além de homens competitivos em guinchos de reboque, que negociavam, suavam e fumavam. Quando chegou a ambulância, tentaram convencê-la a ir para o hospital, mas disseram que não poderiam forçá-la.
Penny insistiu que estava bem.
Via uma mancha estranha diante dela:
Um longo mural de sangue.
Não, ela iria ao médico do bairro mesmo, e todos concordaram: a imigrante era mais casca-grossa do que parecia.
Os policiais brincaram, fingiram que a prendiam (só porque a levariam na viatura) e a conduziram devagar até sua casa. O oficial mais jovem, o que mascava chiclete de menta, cuidou do vestido.
Com delicadeza, ele o ajeitou no porta-malas.

***

Em casa, ela sabia o que precisava fazer.
Limpar-se.
Tomar uma xícara de chá.
Ligar para Michael, e então para a seguradora.
Como era de se esperar, não fez nenhuma dessas coisas.
Não; ela reuniu todas as forças, estirou o vestido no sofá e se sentou ao piano, completamente abatida, arrasada. Tocou metade de “Sonata ao luar”, sem enxergar uma nota sequer.

***

No médico, uma hora depois, ela não deu um pio.
Michael segurou sua mão enquanto as costelas eram pressionadas de leve, e o nariz, golpeado de volta ao lugar.
Penélope só prendeu a respiração e engoliu em seco.
Na saída do consultório, no entanto, ela se contorceu e se deitou no chão da sala de espera. As pessoas se esticaram para ver.
Quando Michael se agachou para ajudá-la, notou em um canto o típico acervo de brinquedos no consultório, mas deu de ombros e logo afastou o olhar. Ele a carregou porta afora.

***

No sofá usado de casa, ela se deitou com a cabeça no colo dele. Então pediu que ele lesse a Ilíada, e Michael foi tomado por uma percepção reveladora — em vez de pensar o óbvio, algo como “não sou seu falecido pai”, ele destrinchou algo muito mais profundo. Percebeu e se acostumou a uma verdade: ele a amava muito mais do que a Michelangelo ou a Abbey Hanley juntos.
Ele secou a lágrima na bochecha dela.
Havia sangue ressequido em seus lábios.
Pegou o livro e leu, e ela chorou, e pegou no sono, ainda sangrando...
Lá estavam o rápido Aquiles, o engenhoso Odisseu e todos os demais deuses e guerreiros. Os favoritos dele eram Heitor, o provocador — conhecido também como domador de cavalos —, e Diomedes, filho de Tideu.
Ele passou a noite toda sentado com ela.
Lia, virava as páginas e lia.

***

Então veio o casamento, realizado conforme os planos, no dia seguinte.
17 de fevereiro.
Eram poucos convidados:
Alguns amigos peões no lado de Michael.
Um grupo de faxineiras junto a Penny.
Adelle Dunbar estava presente, bem como o velho Weinrauch, que ofereceu anti-inflamatórios à noiva. Felizmente, o inchaço tinha diminuído; ela ainda sangrava de quando em quando, e um olho roxo cintilava através da camada de maquiagem, por mais que tivessem tentado ocultá-lo.
A igreja era pequena, mas um tanto cavernosa. Os vitrais exibiam um Cristo torturado e colorido e quebravam um pouco da escuridão. O padre era alto e calvo, e riu quando Michael se aproximou de Penélope e disse:
Viu? Nem mesmo um acidente de carro te livrou dessa.
Mesmo com a brincadeira, ele não conseguiu esconder o ar de tristeza quando a primeira gota de sangue pingou no vestido e se expandiu como uma inundação varrendo a cidade.
Convidados de ambos os lados se apressaram para socorrê-la, e Penny respondeu com um sorriso enternecido. Pegou o lenço oferecido por Michael e proclamou:
Você está se casando com uma noiva de nariz quebrado.
Muito bem — disse o padre, quando o sangue foi estancado, e prosseguiu timidamente, e o Cristo colorido assistiu a tudo, até que homem e mulher se tornaram Michael e Penélope Dunbar.
Eles se viraram, como fazem quase todos os casais, e sorriram para a congregação.
Assinaram os devidos papéis.
Marcharam pela nave da igreja, em direção às portas que se abriam para a luz branca e escaldante do sol que os recebia, e quando penso na cena, vejo aquela mesma sedução; saíram de lá puxando pela mão a felicidade indomável e levaram-na para a vida.
Naquelas vidas antes de nós, ainda restavam dois capítulos.

Markus Zusak, em O construtor de pontes

Nenhum comentário:

Postar um comentário