quarta-feira, 8 de maio de 2024

O sono exagerado


A noite foi longa e, com os pensamentos de Clay, escandalosa.
Em determinado momento, ele se levantou para ir ao banheiro e topou com o Assassino, quase engolido pelo sofá. Soterrado por livros e diagramas.
Ficou de pé ao lado dele por um tempo.
Olhou para os livros e as plantas baixas no peito do Assassino. Parecia que a ponte era seu cobertor.
Então chegou a manhã — uma manhã que de manhã não tinha nada, pois eram duas da tarde quando Clay despertou no susto, o sol agarrado em seu pescoço como Heitor, uma imensa presença no quarto.
Levantou-se mortificado; cambaleou. Não, não. Onde está ele? Apressado, foi aos tropeços até a porta da frente, saiu de casa e parou na varanda, de pijama. Como pude dormir tanto?
Olá.
O Assassino o observava.
Tinha acabado de chegar pela lateral do terreno.

***

Clay se vestiu, e então os dois se sentaram à mesa da cozinha; dessa vez, ele comeu. O relógio preto e branco do fogão antigo mal tinha acabado de passar das 2:11 para 2:12, e Clay já estava terminando de comer algumas fatias de pão e um bom punhado de ovos assassinos.
Coma mais. Você vai precisar de muita força.
O quê?
O Assassino continuou mastigando, parado ali, sentado de frente para ele.
Será que estava omitindo alguma coisa de Clay?
Sim.
Gritos durante a manhã inteira.
Enquanto dormia, ele gritou o meu nome.

***

Um sono exagerado, e já fiquei para trás.
Esse era o pensamento que não saía da cabeça de Clay enquanto comia a contragosto — e decidiu que faria de tudo para se livrar daquilo.
Pão e palavras.
Não vai acontecer de novo.
O quê?
Nunca durmo tanto assim. Na verdade, mal durmo.
Michael sorriu; sim, ele era mesmo o Michael. Será que o sangue vital do passado estava voltando a correr em suas veias? Ou era só impressão?
Está tudo bem, Clay.
Mas não... ah... meu Deus!
Ele deu um pulo da cadeira, levando a mesa junto com o joelho.
Clay... por favor...
Pela primeira vez, meu irmão observou o rosto diante de si. Era uma versão mais velha de mim, mas sem o fogo nos olhos. No entanto, o resto, desde o cabelo preto até o próprio cansaço, era igual.
Então, Clay afastou a cadeira, dessa vez como manda a educação, mas o Assassino estendeu a mão, pedindo:
Espera.
Clay, contudo, estava pronto para sair, e não só da cozinha.
Não — falou. — Eu...
Outra vez a mão. Calejada e gasta. Mãos de trabalhador. Acenou, como se quisesse espantar uma mosca de um bolo de aniversário.
Shh. O que você acha que vai encontrar lá fora?
Ou seja:
O que foi que trouxe você aqui?
Tudo que Clay conseguia ouvir eram os insetos. A nota única.
E então o pensamento de algo grandioso.
Levantou-se, debruçando-se na mesa. Mentiu, dizendo:
Não há nada lá fora.
O Assassino não engoliu aquilo.
Não, Clay, essa coisa trouxe você até aqui, mas você está com medo, então é mais fácil ficar aí sentado e discutir comigo.
O garoto se empertigou.
De que merda você está falando?
Só estou dizendo que está tudo bem... — A voz de Michael morreu enquanto ele analisava com atenção um garoto que não conseguia tocar ou alcançar. — Não sei bem quanto tempo você passou lá fora, entre aquelas árvores, mas se saiu de lá para vir até aqui, deve ter sido por um bom motivo...
Meu Deus.
O pensamento invadiu a casa junto com o calor.
Ele me viu. A tarde inteira.
E então:
Fica aí — pediu o Assassino — e come mais um pouco. Porque amanhã eu tenho que te mostrar... Tem uma coisa que você precisa ver.

Markus Zusak, in O construtor de pontes

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