sábado, 4 de maio de 2024

O filho do satã


Eu tinha onze anos e meus dois amigos, Hass e Morgan, doze, e era verão, não tínhamos aula, e nos sentamos no gramado, ao sol, atrás da garagem do meu pai, fumando cigarros.
Droga! – eu disse.
Eu estava sentado sob uma árvore. Morgan e Hass estavam sentados de costas para a garagem.
O que foi? – perguntou Morgan.
Temos que pegar aquele filho da puta – eu disse. – Ele é uma vergonha para a vizinhança!
Quem? – perguntou Hass.
O Simpson – eu disse.
É mesmo – disse Hass –, ele tem sardas demais. Isso me irrita.
Não é isso – eu disse.
Não? – disse Morgan.
Não. Aquele filho da puta disse que comeu uma garota debaixo da minha casa semana passada. É uma baita mentira! – eu disse.
Sem dúvida! – disse Hass.
Ele nem sabe trepar – disse Morgan.
O que ele sabe é mentir – eu disse.
Mentirosos não servem pra nada – disse Hass, soprando um arco de fumaça no ar.
Eu não gosto de ouvir esse tipo de baboseira de um cara que tem sardas – disse Morgan.
Bem, então talvez a gente tenha que pegar ele – sugeri.
Por que não? – perguntou Hass.
Vamos pegar ele – disse Morgan.
Cruzamos a calçada da casa de Simpson e lá estava ele, jogando bola contra a parede da garagem.
Ei – eu disse –, olhem só quem está brincando sozinho!
Simpson pegou a bola num salto e se voltou em nossa direção.
Olá, companheiros!
Nós o cercamos.
Andou comendo alguma garota embaixo de alguma casa nesses últimos dias? – perguntou Morgan.
Não!
Como não? – perguntou Hass.
Ah, sei lá.
Eu não acredito que você tenha comido alguém a não ser você mesmo! – eu disse.
Eu vou entrar agora – disse Simpson. – Minha mãe me pediu para lavar a louça.
Sua mãe mete a louça na boceta? – disse Morgan.
Nós rimos. Chegamos mais perto de Simpson. De súbito, eu meti um soco na barriga dele. Ele se curvou para a frente, segurando o estômago. Ficou desse jeito durante meio minuto, depois se endireitou.
Meu pai vai chegar a qualquer momento – ele nos disse.
Ah, é? Seu pai também come menininhas debaixo das casas? – perguntei.
Não.
Nós rimos.
Simpson não disse nada.
Olhem pra essas sardas – disse Morgan. – Toda vez que ele come uma menininha embaixo de uma casa, nasce uma sarda nova.
Simpson não disse nada. Parecia cada vez mais assustado.
Eu tenho uma irmã – disse Hass. – Quem me garante que você não vai tentar comer a minha irmã embaixo de uma casa?
Eu nunca faria isso, Hass, dou a minha palavra a você!
Ah, é?
Sim, de verdade!
Bem, isso é pra você não mudar de ideia!
Hass meteu um soco na barriga de Simpson. Simpson se curvou de novo. Hass se abaixou, pegou um punhado de terra e enfiou na gola da camiseta de Simpson. Simpson se endireitou. Seus olhos estavam cheios de lágrimas. Um veadinho.
Deixem eu ir, companheiros, por favor!
Ir pra onde? – perguntei. – Quer se esconder debaixo da saia da sua mãe para ver a louça sair da boceta dela?
Você nunca comeu ninguém – disse Morgan –, você não tem nem pau! Você mija pelas orelhas!
Se um dia eu pegar você olhando pra minha irmã – disse Hass –, vai levar uma surra tão grande que vai virar uma sarda gigante.
Deixem-me ir, por favor!
Senti vontade de deixá-lo ir. Talvez ele não tivesse comido ninguém. Talvez só estivesse sonhando acordado. Mas eu era o jovem líder. Não podia mostrar nenhuma compaixão.
Você vem conosco, Simpson.
Não!
Não, o caralho! Você vem conosco! Agora, ande!
Caminhei ao redor dele e lhe dei um chute na bunda, bem forte. Ele gritou.
CALE A BOCA! – eu gritei. – CALE A BOCA OU VAI SER PIOR! AGORA, ANDE!
Nós o conduzimos até a calçada, cruzamos o gramado até a calçada da minha casa e seguimos para o meu quintal.
Agora se endireite! – eu disse. – Solte as mãos! Vamos organizar um tribunal improvisado!
Eu me virei para Morgan e Hass e perguntei:
Todos aqueles que acham que este homem é culpado de mentir que comeu uma menininha debaixo da minha casa devem dizer “culpado”.
Culpado – disse Hass.
Culpado – disse Morgan.
Culpado – eu disse.
Eu me virei para o prisioneiro.
Simpson, você é considerado culpado!
As lágrimas agora escorriam de seus olhos.
Mas eu não fiz nada – resmungou.
É disso que você é culpado – disse Hass. – De mentir!
Mas vocês mentem o tempo todo!
Não sobre trepar – disse Morgan.
É sobre isso que vocês mais mentem. Foi com vocês que eu aprendi!
Sargento – eu me virei para Hass –, amordace o prisioneiro. Estou cansado de suas mentiras de merda!
Sim, senhor!
Hass correu até o varal. Encontrou um lenço e um pano de prato. Seguramos Simpson enquanto o outro lhe enfiava o lenço na boca, amarrando-ocom o pano de prato. Simpson emitiu um som abafado e mudou de cor.
Você acha que ele consegue respirar? – perguntou Morgan.
Ele pode respirar pelo nariz – eu disse.
Pois é – concordou Hass.
O que a gente vai fazer agora? – perguntou Morgan.
O prisioneiro é culpado, não é? – perguntei.
Sim.
Bem, como juiz, eu o sentencio a ser enforcado até a morte!
Simpson fez uns barulhos por baixo de sua mordaça. Seus olhos nos encaravam, implorando. Eu corri até a garagem e peguei a corda. Havia uma cuidadosamente enrolada, pendurada em um grande gancho na parede. Eu não fazia a menor ideia de por que meu pai tinha aquela corda. Até onde eu sabia, ele nunca a havia usado. Agora ela teria uma utilidade.
Saí da garagem de posse da corda.
Simpson começou a correr. Hass estava bem atrás dele. Ele pulou em cima de Simpson e o derrubou no chão. Virou-lhe o corpo e começou a dar socos na cara dele. Eu corri até eles e bati forte com a ponta da corda no rosto de Hass. Ele parou com os socos. Olhou para mim.
Seu filho da puta, vou dar uma surra em você!
Como juiz, meu veredicto foi que esse homem seria enforcado. E assim será! SOLTEM O PRISIONEIRO!
Seu filho da puta, eu vou dar uma boa surra em você!
Primeiro vamos enforcar o prisioneiro! Depois resolveremos nossas desavenças.
Resolveremos mesmo – disse Hass.
Levante-se, prisioneiro! – eu disse.
Hass se moveu rapidamente e Simpson se ergueu. Seu nariz estava sangrando e havia manchado a parte da frente de sua camiseta. Seu sangue era de um vermelho muito vivo. Mas Simpson parecia resignado. Não estava mais chorando. Seus olhos, porém, revelavam traços de pavor, algo terrível de se ver.
Me dê um cigarro – eu disse para Morgan.
Ele pôs um na minha boca.
Acenda – eu disse.
Morgan acendeu o cigarro e eu dei uma tragada, então, segurando o cigarro entre meus lábios, exalei a fumaça pelo nariz enquanto fazia um laço na ponta da corda.
Levem o prisioneiro para a varanda! – ordenei.
Havia uma varanda nos fundos da casa. Sobre a varanda, havia um telhadinho. Eu lancei a corda sobre uma trave e então puxei o laço para baixo, em frente à cabeça de Simpson. Eu não queria ir além com aquilo. Achava que Simpson já havia sofrido o suficiente, mas eu era o líder e teria de brigar com Hass depois, assim não podia demonstrar nenhum sinal de fraqueza.
Talvez a gente não devesse fazer isso – disse Morgan.
O homem é culpado! – gritei.
Isso mesmo! – gritou Hass. – Ele deve ser enforcado!
Olhem, ele se mijou todo – disse Morgan.
De fato, havia uma mancha escura na parte da frente das calças de Simpson, e ela estava aumentando.
Covarde – eu disse.
Coloquei o laço sobre a cabeça de Simpson. Dei um puxão na corda e levantei Simpson até a ponta dos seus pés. Então, peguei a outra ponta da corda e amarrei numa torneira no lado da casa. Dei um nó bem apertado na corda e gritei:
Vamos dar o fora daqui!
Olhamos para o Simpson, que se equilibrava na ponta dos pés. Ele estava girando um pouco, devagar, parecia já estar morto.
Comecei a correr. Morgan e Hass correram também. Corremos até a calçada e então Morgan e Hass foram embora, cada um para a sua casa. Dei-me conta de que eu não tinha para onde ir. Hass, eu pensei, ou você se esqueceu da briga ou não queria brigar.
Fiquei parado na calçada por alguns instantes, então corri de volta ao pátio. Simpson ainda estava girando. Um pouco, devagar. Tínhamos nos esquecido de amarrar suas mãos. Ele estava com as mãos erguidas, tentando aliviar a pressão no pescoço, mas não estava conseguindo. Corri até a torneira, desatei a corda e a deixei correr. Simpson se chocou contra o piso da varanda, depois tropeçou e caiu no gramado.
Ele estava de bruços. Virei seu corpo e tirei a mordaça. Ele estava mal. Tinha o aspecto de quem poderia morrer a qualquer momento. Me debrucei sobre ele.
Ouça bem, seu filho da puta, não morra, eu não queria te matar, de verdade. Se você morrer, vai ser triste. Mas se não morrer e contar isso para alguém, aí você não me escapa. Entendeu?
Simpson não respondeu. Apenas me olhou. Ele estava péssimo. Seu rosto estava roxo e ele tinha marcas de corda no pescoço.
Eu me levantei. Olhei-o por alguns instantes. Ele não se movia. A coisa estava feia. Fiquei tonto. Depois me recompus. Respirei fundo e caminhei até a calçada. Era cerca de quatro da tarde. Comecei a caminhar. Caminhei até a avenida e segui caminhando. Eu estava pensativo. Sentia que minha vida tinha se acabado. Simpson sempre gostara de andar sozinho. Talvez fosse solitário. Nunca se misturava com a gente ou com os outros garotos. Ele era estranho nesse sentido. Talvez fosse isso o que nos incomodava nele. Mesmo assim, ele tinha algo de bom. Eu sentia que havia feito algo muito ruim e, ao mesmo tempo, sentia que não. Na maior parte do tempo eu tinha um sentimento vago, que estava centrado no meu estômago. Caminhava e caminhava. Caminhava até a autoestrada e voltava. Meus sapatos machucavam muito meus pés. Meus pais sempre me compravam sapatos vagabundos. Pareciam bons por mais ou menos uma semana, então o couro rachava e os pregos começavam a atravessar a sola. Eu seguia caminhando mesmo assim.
Quando voltei para casa já era quase noite. Caminhei vagarosamente pela calçada em direção ao quintal. Simpson não estava lá. Nem a corda. Talvez ele estivesse morto. Talvez ele estivesse em outro lugar. Olhei em volta.
Vi o rosto do meu pai pela porta de tela.
Venha aqui – ele falou.
Subi as escadas da varanda e passei por ele.
A sua mãe ainda não chegou. Melhor assim. Vá para o quarto. Eu quero ter uma conversinha com você.
Avancei até o quarto, sentei na cama e olhei para os meus sapatos vagabundos. Meu pai era um homem grande, mais de um metro e oitenta de altura. Ele tinha uma cabeça grande e olhos que pareciam pendurados sob suas sobrancelhas bagunçadas. Seus lábios eram grossos e suas orelhas, grandes. Era másculo sem precisar fazer esforço algum.
Por onde você andava? – ele perguntou.
Por aí, caminhando.
Caminhando? Por quê?
Gosto de caminhar.
Desde quando?
Desde hoje.
Fez-se um longo silêncio. Então ele falou de novo.
O que aconteceu no nosso quintal hoje à tarde?
Ele está morto?
Quem?
Eu disse pra ele não contar. Se ele contou, é porque não está morto.
Não, ele não está morto. E os pais dele iam chamar a polícia. Eu tive que conversar um longo tempo com eles para os convencer a não fazer isso. Se eles tivessem chamado a polícia, sua mãe teria ficado arrasada! Está entendendo?
Não respondi.
Sua mãe teria ficado arrasada! Você entende isso?
Não respondi.
Tive que pagar para que ficassem calados. E, além disso, vou ter que pagar as despesas médicas. Você vai levar a surra da sua vida! Eu vou lhe dar um corretivo! Não vou criar um filho incapaz de viver em sociedade!
Ele ficou de pé junto à porta, parado. Eu olhei para os seus olhos debaixo daquelas sobrancelhas, para aquele corpo enorme.
Chame a polícia – eu disse. – Não quero nada com você. Prefiro a polícia.
Ele se aproximou de mim devagar.
A polícia não entende gente como você.
Eu levantei da cama e cerrei os punhos.
Vamos lá – eu disse –, vou lutar com você!
Com um rápido movimento, ele estava em cima de mim. Foi como se um raio de luz me cegasse, uma pancada tão forte que nem cheguei a sentir. Eu estava no chão. Levantei-me.
É melhor você me matar – eu disse –, porque quando eu crescer vou matar você!
A pancada que veio a seguir me fez rolar para debaixo da cama. Parecia um bom lugar para estar. Olhei para as molas. Eu nunca tinha visto nada mais agradável e maravilhoso do que aquelas molas em cima de mim. Então eu ri. Foi um riso apavorado, mas eu ri, e ri porque me veio o pensamento de que talvez o Simpson tivesse de fato comido uma garota debaixo da minha casa.
De que diabos você está rindo? – gritou meu pai. – Você é mesmo o Filho do Satã, você não é meu filho!
Eu vi sua enorme mão tatear por debaixo da cama, procurando por mim. Quando se aproximou, agarrei a sua mão com as minhas e a mordi com toda a força. Ouvi um gemido feroz e a mão se recolheu. Senti o gosto de sangue e de carne em minha boca, cuspi. Então eu soube que, apesar de Simpson estar vivo, eu poderia estar morto dentro de poucos instantes.
Muito bem – ouvi meu pai dizer em voz baixa –, agora você pediu e, por Deus, você vai levar.
Eu esperei. E, enquanto esperava, ouvia apenas alguns sons estranhos. Ouvia os pássaros, o som dos carros que passavam, ouvia até mesmo o som do meu coração batendo forte, o som do sangue correndo em minhas veias. Eu ouvia a respiração do meu pai, e me arrastei até o exato centro da cama e esperei pelo que viria em seguida.

Charles Bukowski, in Miscelânea septuagenária: contos & poemas

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