domingo, 5 de maio de 2024

De re aliena


Sereis como Deuses!…
Princípio de conversa da Serpente com Eva

Com o verão cresce o gasto de energia e aumenta a necessidade de comer. Os frutos do mamoeiro, da goiabeira, do sapotizeiro amadurecem e caem, espapaçados, na areia mole. Ficam com uma pequenina nuvem de mosquitos festejadores, moscas diligentes e insetos mais graúdos que sabem morder e sugar, excelentemente. Os pássaros participam do cibo farto e delicioso e aproveitam a presença copiosa dos demais fregueses para incluí-los nos cardápios. Não há nada mais estimulante que um besouro ácido depois da polpa doce de um mamão rubro e macio, com a multidão das sementes vestidas de seda assimilável e saborosa, prontas para as certeiras bicadas do bem-te-vi e dos canários de ouro.
Por este processo aglutinativo de frutas justificando uma afluência desusada de insetos e pássaros, o canto de muro vive vida nova de agitação e interesse acima da rotina, do triste habitual que a todos monotoniza.
Os povos de Blata, Vênia, Musi acorrem ao festim farto e gratuito e de mais a mais próximo e sem perigos maiores. Raca, Titius, Licosa não comparecem. Gô faz ato de presença mas há coisas novas vindas de longe, espalhadas nas casas distantes porque se aproxima a época do Natal. Sofia desdenha esses banquetes e Niti igualmente. Não há convidado nem intrusos e a recepção decorre no ambiente onde as figuras são conhecidas e toleradamente estimadas. O mandarim Fu, solene, vem sempre apreciar os besouros e as ondas ciciantes de mosquitos e moscas, inesgotáveis e circulantes, agitando o ar na palpitação miraculosa das asas invisíveis.
São grandes horas de fartação sem ginástica e abundância sem acrobacia. Os dias e as noites têm suas faunas rigorosas e clássicas mas sempre há uma exceção imprevista, desnorteando observadores e pondo notas e avisos nos livros de técnica. Há quem saia mais cedo e também quem prolongue o trabalho, sabidamente diurno.
Já escuro-escuro, o bem-te-vi esvoaça na sobremesa e o casal de canários morigerados e sérios estão beliscando sem obediência aos horários rituais. Que diriam os mestres da Ornitologia vendo esta indisciplina espantosa? O mesmo que resmungaria um astrônomo deparando de dia uma estrela retardatária…
Mas, durante o dia radiante, embriagador de luz quase palpável, as aves obrigam nossos olhos a olhá-las mais tempo, tornadas para a primeira fila da representação tumultuosa. Passam de coristas aos lugares de tenores e prima-donas, na boca de cena, monopolizando os aplausos.
É possível namorá-los demoradamente vendo-os bicar, saltar, pular, executando as várias formas de erguer o voo e o desenho alado e gracioso descrito no ar com as asas frementes ou imóveis, dominadoras.
Todas as velhas notícias aprendidas outrora e semiesquecidas reaparecem nítidas. Ossos com cavidades internas, pneumáticos, sacos aéreos pela dilatação das membranas internas dos brônquios, comunicando com os ossos, levando ar aos pulmões porque no voo o tórax, tornado rígido, não permite a respiração normal, unicamente ocupado com a ação dos músculos motores; diminuição de peso, as penas tetrizes cobrindo-lhe o corpo sem oferecer resistência ao impulso aéreo, as retrizes da cauda, em leme, e as rêmiges, potentes nas asas miraculosas, os músculos peitorais mais fortes que os do Homem, toda conformação aerodinâmica, feita para atravessar as camadas, furar, projetar-se, sob o ímpeto propulsor de uma aceleração de ritmo admirável, não me contentam nem satisfazem. Parece-me sacrilégio a explicação simplista e fácil para compreender a maravilha que volteia ao sol num ambiente natural, insubstituível, lógico.
Ainda recordo a crítica fisiologista à impossibilidade dos anjos voarem porque os peitorais e o esterno não eram suficientemente desenvolvidos. O sábio é obrigado a suicidar o poeta lírico que deve espernear dentro dele. Os anjos e deuses olímpicos elevam-se no espaço em virtude de sua própria natureza etérea, recebendo da essência interior, divina, o movimento na força única da vontade. Vera incessu patuit dea – conhecia-se a deusa pelo andar. Independeria dos atributos exteriores de sua divindade. Esta gente erudita não lê Homero. Aprenderia como os deuses voam sem asas.
Num avião nós somos hóspedes. Criadores, inventores, fabricantes de motores e da aparelhagem surpreendente, pilotos, vamos olhando o caminho sem rastros através das nuvens, milhares de metros acima de um oceano sem segredos, de ondas banais, incessantes e humilhadas pelo pássaro sonoro que parece independer de todos os regimes dos ventos.
Mas uma ave é a criatura que voa, íntegra, completa, total. Ela é a mesma sensação indescritível, independência, arbítrio das curvas, das descidas, das retas harmoniosas. Ela tem a potência nos limites de sua anatomia funcional. É o próprio voo. Nós somos passageiros num objeto que voa. Levados por ele embora sob a direção das mãos, dos olhos, da experiência humana. Entre nós e o voo está o avião, rumor, hélices, jato, gasolina, energia atômica. No meio, o Homem, orgulhoso que foi ao céu escondido no bojo de sua invenção, do seu atrevimento, como o jabuti participou da festa altíssima oculto na viola do urubu. Ai de nós, não voamos. Somos transportados.
Quanto à origem, creio que a melhor fórmula ainda é o 1º livro do Gênesis, versículos 20 e 21, especialmente o Creavitque Deus... omne volatile secundum genus suum.
Vamos crer num réptil que se lançou de um galho para o chão, já possuindo órgão antes da função, saliências, abas, excrescências, de cada lado do tronco, tornadas asas de pele, paraquedas amortecedores do salto. Ninguém jamais saberá se este animal, nas alturas do Jurássico, pretendia realmente caçar ou suicidar-se. É o Archaeopteryx deixando nas ardósias de Selenhofen a impressão horrenda do corpo onde se estendem asas com penas. Este lagarto, que salta longamente com o auxílio de membranas orladas de penas, abre a série aos graciosos monstros de nomes amáveis, Pteranodontes, Rhamphorhynchus, Dimorphodontes, Pterodactylus, répteis de voos pesados, lentos, tenebrosos, como se víssemos um jacaré de Marajó passando por cima de uma palmeira.
Quando vai passando o Cretáceo há aves de penas mas como surgiram elas e por que a diferenciação tornou-se especificamente total? E por que os répteis iniciantes desapareceram, anulados na seleção, empurrados para a morte? É preciso o depoimento dos fósseis intermediários para a revelação assombrosa. As asas, as penas, o impulso ascensional são mistérios. Mistérios a independência dos membros posteriores, a projeção da carena, a autonomia, a disposição para o voo.
Como estes membros anteriores se reduziram, se a identidade ecológica não obrigaria diversificação tamanha, ganhando a maravilha das rêmiges? E a ciência do equilíbrio e da direção nas retrizes, o leque da cauda? Razões para sempre obscuras determinaram que este lagarto abrisse o rudimento das asas, opondo ao vento uma superfície sensível e vibrátil. Mas não foram estes os sobreviventes que projetaram a espécie para a perpetuidade, mas outras ainda escondidas nas fases evolutivas sem a visão do conjunto e do testemunho fóssil.
O pterossauro já possuía bico córneo, ausência de dentes, ossos sem medula além das asas de pele, pegajosas e molengas, quando desapareceu. Desapareceu sem deixar sucessores para o recebimento da espantosa herança que era o Reino do Ar. Não teve a honra de ser o antepassado do bem-te-vi que dá piruetas ou do xexéu que reviravolteia no canto de muro.
Lêmures, esquilos, rãs, lagartos e mais paraquedistas continuam alistados permanentemente nesta arma imutável. Jamais obtiveram os benefícios da promoção. O avô do canário da goiabeira seria um ur-typus que ainda não permitiu reportagem reveladora. Continua em segredo. Sabe-se, timidamente, que nos frios dos finais do Cretáceo os répteis voadores desistiram da competição e os que usavam penas avançaram para a contemporaneidade do século XX.
Et vidit Deus quod esset bonum. E viu Deus que era bom o voo dos pássaros deixando na graça airosa e frágil de sua mecânica o problema para atrapalhar os sábios dos tempos passados e das eras presentes.
O vértice do ângulo comum entre religiosos e céticos, os devotos de Deus e da Ciência, é justamente a Fé. Os primeiros acreditam que o Ser Supremo criou uma espécie por um ato livre de sua vontade. Os segundos creem que um animal, num dado momento, tomou determinada atitude e esta, repetindo-se no tempo, originou espécie ou modificações essenciais à sua existência no espaço. O bem-te-vi está saltando no canto de muro porque Deus o fez ou um réptil o gerou no período jurássico, pulando duma saliência de pedra e daí em diante a função fez o órgão.
E Deus viu que era bom…
Pouco se me dá que a lagartixa esteja concordando comigo ou Fu discorde, num bufo de ironia piedosa. A maior alegria humana é o encontro de sua própria explicação para o fenômeno, da sua e não da explicação oficial, possivelmente certa, verificada, inabalável. Não posso recordar nenhum ornitologista famoso, mas Pascal que não o era.
On se persuade mieux, pour l’ordinaire, par les raisons qu’on a trouvées soi-même, que par celles que sont venues dans l’esprit des autres.
Todas estas conclusões por causa de um bem-te-vi maluco e de um xexéu deseducado…
Posso afirmar que os pássaros possuem muitos cantos e cada um destes tem inflexões diversas, especialmente na parte final. Em voo, no trabalho da nidificação, pousados, alimentando-se, em pleno jogo lúdico, chamando a companheira, isolados, como informando do seu paradeiro ou situação tranquila, são diferentes, típicos, característicos. O bem-te-vi foi tomar banho no tanque e molhou-se demais. Tanto esvoaçou, abrindo as asas, borrifando-se, dando saltos e voejos circulares, que acabou dentro da água, como um banhista. Saiu pingando água, trôpego, com um andar de urubu malandro, canhestro. Pude facilmente deixar o esconderijo e apanhá-lo, segurando-o na mão. Não esqueci os olhos abertos, o bico fendido num apelo desesperado em que se via a garganta nacarada e palpitante e sobretudo o grito, o grito que lançou, tão diverso de quantos ouvira no dia luminoso e vadio de observação encantada. Uma série de gritos roucos, como dificilmente partidos da garganta, ásperos, inacabáveis, numa entonação aflita, persistente, significando menos uma súplica de impossível auxílio do que um aviso heroico para que a companheira se afastasse da mesma desgraça. Semelhava antes um coaxo de sapo do que uma nota musical de pássaro. Buffon, há dois séculos, já registrara o mesmo canto, lembrando o dos batráquios e que ouvira a um dos soberanos tenores, o rouxinol. Renúncia de luta, resignação, aceitamento da morte inapelável. Restitui-o à beira do tanque e voltei ao ponto escondido. O bem-te-vi, depois de algumas tentativas, pôde voar. Pousou num galho da mangueira e de lá soltou outro grito, noutro tom, noutro timbre. Uma só nota, alta, límpida, triunfal. Todos os bem-te-vis deviam ter compreendido que o companheiro regressara ao sol, às alegrias da vida anterior.
Certamente o ecúmeno dos pássaros é proporcional à sua amplidão de voo. A sua “liberdade” é bem mais limitada que a nossa poética compreensão da autonomia das aves. Deverá estar circunscrita não somente às fronteiras das utilidades mas também ao possível conhecimento habitual das áreas percorridas. Na época do ninho, com a esposa e filhos, é natural que não se afaste muito da zona doméstica. Noto, porém, que bem depois, com os filhos independentes e dispersos, os voos têm os mesmos horizontes e podem ser medidos por determinados pontos de referência. Podia ir muito além mas não vai. O meu casal de canários vive dentro de um possível quilômetro quadrado em tempo normal. O bem-te-vi é mais viajante mas, regressando ao pouso antes do anoitecer, não deve ter percorrido distância respeitável. Minha impressão humana é que o uso das asas desse um sentido de deslocação eterna, de jornada ininterrupta, de viagem sem fim, uma espécie de marinheiro-fantasma na avifauna, atravessando os espaços com o destino de uma evasão contínua. Mas, ao que deduzo, as aves do canto de muro estão presas ao limite da vida como eu, preso às fronteiras do meu trabalho, batendo insensivelmente nas grades da gaiola citadina onde vivo sem cantar.
Buffon ensinava uma hierarquia relativamente ao predomínio dos sentidos. Para o homem a seriação era: – Tato, paladar, vista, audição, olfato. Para os quadrúpedes: – Olfato, paladar (quase o mesmo sentido determinador dos movimentos), vista, audição, tato. Para as aves: – Visão, audição, tato, paladar, olfato. Ponho, com a maior sem-cerimônia, o ouvido como órgão precípuo nos meus amigos de pena e bico.
Fui caçador, caçador criminoso e de crimes laboriosamente premeditados porque caçava com alçapões, armadilhas, visgo, laços, com iscas de melão-de-são-caetano e – horror! – levando uma outra ave para “chama”, pulando dentro do alçapão. Vi, tantíssimas vezes, a ave aproximar-se, realizar o seu longo processo de acomodação, conservando a área prudente para a fuga. Nunca há silêncio nos recantos onde exerci minha reprovável atividade. Havia rumores de vento nas galhadas, quedas de folha, pios, sussurros, gravetos despencados, sons confusos, dispersos, longínquos, trazidos pelas aragens e espalhados na mata. Vezes os arbustos atritavam. Uma vaca atravessava com seu chocalho avisador. A ave, seduzida pela visão do companheiro ou engodo da fruta apetecida e aparentemente fácil, esvoaçava por perto, um círculo maior ou menor, zona intransponível onde sua curiosidade, amor ou gula faziam-na semiprisioneira. Podia mesmo avistar-me, deitado, imóvel, disfarçado covardemente, olhando-a. Ia-se lentamente habituando e o complexo da fuga diluía-se no atrito de outros interesses materiais e notórios. Bastava, entretanto, um estalido, quebra de raminho seco, um pé que se espreguiçava inconsciente e mexera na moita de folhas secas, numa bulha de cascavel agitada e a ave voava, de vez, num voo diagonal, liberta de todas as seduções e restituída ao seu arbítrio crítico. Só o rumor pudera dar ao seu instinto a totalidade da impressão suspeitosa. A visão do objeto suspeito é de menor eficácia que a audição de um rumor suspeito.
É o cúmulo que neguem a vista maravilhosa das aves. De certas aves, pelo menos. Sofia – dou depoimento pessoal – ouve melhor do que vê e mesmo nas horas de penumbra. Falta-me apenas saber o limite da distância em que uma ave tem a percepção da figura. Como raros teimosos ainda leem Buffon, gosto de citá-lo porque é uma observação numa lonjura de dois séculos para confrontar-se com as observações americanas. Buffon afirmava que um objeto iluminado pela luz solar desaparece aos nossos olhos na distância de 3.436 vezes o seu diâmetro. Um homem desapareceria aos olhos de um pássaro que voasse a 4 mil metros de altura. Certo? Nunca pude verificar mas deve haver bibliografia respondendo a confessada ignorância. Difícil acomodar-se esta visão espantosa com observações de parentes meus, caçadores veteranos e mentirosos relativamente sem imaginação. Sei muito bem da imaginação do caçador, do pescador de alto mar e do antigo e saudoso caixeiro-viajante, substituído, com vantagem, pelas recordações confidenciais de alguns turistas, com ou sem livros de viagens.
O gavião faminto, não tendo disponíveis os pintos de galinheiros, persegue pássaros com a desenvoltura natural de quem sabe o bico e as garras que possui. Os caçadores sertanejos não perdoam o corsário. Numa destas feitas notaram que um gavião possante estava pousado a uns vinte metros da árvore onde canários, rolinhas, papa-capins vadiavam despreocupados como numa praia de Copacabana. Só fugiram quando o gavião levantou voo. Estavam todos perfeitamente vendo o pirata. Audácia destemorosa ou falta de visão no plano da prudência?…
Noto também que os pássaros pousados no alto cantam mais forte que os encontrados ocasionalmente em pontos baixos, mesmo no solo.
O contato humano influirá decisivamente na variedade melódica das aves cantadoras? Afirmam que as aves dos países bárbaros são ásperas e roucas e as “civilizadas” lépidas e claras. Certo que apenas determinadas espécies aperfeiçoam o canto quando prisioneiras. As melhores são os filhos, netos, bisnetos de aves presas, aves que dificilmente recobrarão as técnicas da nidificação e o esforço pelo cibo diário, livremente, habituadas à gaiola farta, como os canários belgas. Há inicialmente modificação no canto e todas as aves famosas como tenoras são nascidas no cativeiro. As capturadas e postas nos aviários não recobram plenitude do canto que lhes custou a liberdade. Naturalmente xexéus, bem-te-vis e outras aves que costumam imitar outras, e outros sons, ganham variações novas nas proximidades das residências humanas porque dali recebem as excitações de motivos sonoros não possíveis no campo ou na mata. As aves em liberdade têm modulações que jamais repetem no âmbito das gaiolas. Em compensação aprendem, seus descendentes, gorjeios e trinados que não conheciam antes, ou melhor, desenvolvem na gaiola certas melodias apenas iniciadas quando em liberdade. Outros diminuem em proporção lamentável e ficam unicamente dando ao senhor a visão das penas bonitas. Ou da fama que não desejam corresponder. Os amadores de aves canoras sabem que os melhores espécimes são “criados”, isto é, feitos, educados, na prisão, filhos de pais prisioneiros e eles próprios, naturalmente, nascidos entre grades. A graúna, o canário, o xexéu de canto atordoador pela variedade perdem muito e muito quando presos. Os filhos recobram as excelências tradicionais. Com um tanto de lirismo dir-se-á que não conhecem as alegrias de um voo livre e decorrentemente ignoram as seduções que a mata oferece aos seus moradores.
Negam que tenham o sentido do paladar na acepção do sabor. Engolindo sem mastigar, sem glândulas salivares, a alimentação será meio mecânico de sustentar-se. Comem o substancial e o dispensável, passando pelo deleitável e o perigoso. Frutos e insetos terão para as aves o mesmo sabor? Não falo das aves presas que outrora tive o mau gosto de possuir. Falo das aves olhadas longamente em plena liberdade. Liberdade para escolher o alimento e tempo da refeição. Quem nunca viu um sanhaçu (tanagrídeo) almoçando numa goiabeira ou bicando mamão maduro não terá a imagem feliz de uma degustação saboreada. Um xexéu merendando minhoca, sabiá em laranja aberta, um canário engolindo semente de mamão-macho, dizem de um prazer quase consciente, expresso nos leves pipilos, o que devem significar as alegrias de boa mesa ao ar livre, num camping inesquecível. Estas mesmas aves na gaiola, com alpiste, pedacinhos de frutas e a folha de alface pendurada, terão outra conduta, comportamento de quem come salada de lagosta na cadeia ou bebe um cru de Mezés-Malé, rayon de miel de Tokay, na hora de ir para a cadeira elétrica.
Uma revolução decisiva nos costumes e critérios de civilização seria o homem e sua mulher terem tido as cores de sua raça de maneira inalterável na epiderme. Couro, pelo, pena, quitina, penugens, conforme o combinado, como possuímos idiomas e bandeiras nacionais, assim seríamos, imutavelmente, identificáveis à primeira vista em nossas respectivas etnias. Os processos de mestiçagem traduzir-se-iam pelas colorações relativas.
A ideia me veio olhando as penas dos meus amigos que terminam o jantar. Por que usam estas cores não sei. Não há acordo, conluio, aliança que possam disfarçar uma da outra família ornitológica. São obrigados a defender suas cores e declarar-se solidários com a imensa família. Foi possível a São Pedro afirmar-se alheio ao conhecimento de Jesus Cristo mas um tiranídeo não pode dizer-se icterídeo. As cores denunciam-no positivamente. Esta fórmula, como valorização de solidarismo político, seria de algum alcance.
A coloração vibrante de algumas aves parece um desafio aos inimigos. As cores neutras, pardacentas, simulando folhas secas, pedras e areias, troncos de árvores, já têm sua bibliografia explicativa. Naturalmente há interpretações difíceis. Ensinam que os animais manchados da mata apresentam manchas de cor clara, simulando as réstias solares. Os nossos felídeos de maior força, as onças, são animais de caça noturna. Tanto a vermelha, suçuarana, como a pintada, preta ou canguçu, deixam durante a noite o covil para o assalto aos currais. A imagem dos raios do sol não pode ter influído, exceto se o mimetismo pertencer às épocas geológicas remotas. Onça de dia é como equilíbrio orçamentário, visão impossível de puro ineditismo.
Mas há cores sem intenção utilitária pelo menos dentro de nossa compreensão. Mas ninguém afirmará que a disposição destas cores não tivesse tido em algum tempo significação essencial para o tipo e depois para a espécie, tanto assim que se tornou comum a todos os membros. Explicável a cor berrante, espetaculosa ou alheia às necessidades da defesa, burla ou intimidação nas aves importadas. As nacionais, algumas, lembram mais uma exibição permanente de apelo às fêmeas arredias ou demonstração da variedade pictórica do Criador, que a indumentária normal de aves que vivem em vigília e evitação aos adversários mais fortes. Mas a região neotrópica é justamente o palco destes desfiles suntuosos.
O ritmo quaternário das estações na Europa e América do Norte dá a divisão regular dos serviços e mesmo intensidade na coloração individual. Os processos de hibernação, resguardo ao frio, alimentação no inverno, correspondem às transformações da Natureza ambiental com as fases típicas da vida vegetal e nesta o cortejo dos insetos, larvas, toda espécie animal dependente. Um outono, um inverno na Europa são pausas no compasso da existência associativa, obrigando-as às mudanças de alimentação, horário de caça, abrigo etc. Aqui, num verão perpétuo afora a época das chuvas, as aves possuem a luminosidade ofuscadora, impulsiva, vibrante dos dias tropicais. Amanhece mais cedo e o ano inteiro é uma provocação ao movimento e ao combate. Os pinguins nos trópicos seriam tangarás.
A pilhéria, cediça e aposentada, lembra que no Brasil existem duas estações: o Verão e a da Estrada de Ferro.
Mas agora os voos vão se tornando mais raros e de âmbito mais restrito. Já uma e outra vez as visitas verificaram nos ninhos sua ordem normal. Do escuro da mangueira os pios vão descendo, anunciando o repouso tranquilo. Ainda há frutas abertas no chão e nas árvores mas a fome deste dia acabou. O chilreado se amiúda quando a noite chega, lenta e doce. O grilo começou a cantar. A luz indecisa transfigura o canto de muro. Aqueles que lutam nas trevas que as estrelas interrompem vão saindo para a vida, voando, andando, rastejando, coleando, perdendo-se na escuridão…

Luís da Câmara Cascudo, in Canto de Muro

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