sábado, 4 de maio de 2024

Da visão e enigma | 1.


Quando, entre os marinheiros, correu a notícia de que Zaratustra se achava a bordo — pois um homem das ilhas bem-aventuradas havia subido juntamente com ele —, houve grande curiosidade e expectativa. Mas Zaratustra silenciou por três dias e estava frio e surdo de tristeza, de modo que não respondeu nem a olhares nem a perguntas. Na tarde do segundo dia, porém, abriu novamente os ouvidos, embora ainda se mantivesse calado: pois havia muita coisa estranha e perigosa a ouvir naquele barco, que vinha de longe e navegava para mais longe ainda. Zaratustra era um amigo de todos os que fazem longas viagens e não querem viver sem perigo. E olha! Enfim sua própria língua se soltou, à força de escutar, e o gelo de seu coração se rompeu: — então ele se pôs a falar assim:

A vós, ousados tenteadores, tentadores,99 e quem se haja uma vez lançado com velas astutas em mares terríveis, —
A vós, ébrios de enigmas, amantes do crepúsculo, cuja alma é atraída com flautas a todo abismo traiçoeiro:
pois não quereis sentir e seguir um fio com mão covarde; e, onde podeis adivinhar, detestais deduzir
Apenas a vós relato o enigma que vi — a visão do mais solitário. —
Recentemente caminhava eu, sombrio, por um crepúsculo pálido como um cadáver — sombrio e rijo, com lábios cerrados. Não apenas um sol havia declinado para mim.
Uma trilha que subia teimosamente entre os seixos, maldosa, solitária, não mais animada por ervas e arbustos: uma trilha de montanha rangendo sob a teimosia de meus pés.
Mudos, andando sobre o zombeteiro chiar do cascalho, pisando os pedregulhos que os faziam deslizar: assim meus pés forçavam o caminho para o alto.
Para o alto: — não obstante o espírito que os puxava para baixo, para o abismo, o espírito de gravidade, meu demônio e arqui-inimigo.
Para o alto: — embora ele estivesse em minhas costas, meio anão, meio toupeira; aleijado; aleijador; pingando chumbo em meu ouvido, pensamentos-gotas de chumbo em meu cérebro.100
Ó Zaratustra”, cochichou zombeteiramente, sílaba por sílaba, “ó pedra da sabedoria! Tu te arremessaste para cima, mas toda pedra arremessada tem de — cair!
Ó Zaratustra, pedra da sabedoria, pedra da funda, destruidor de estrelas! Arremessaste a ti mesmo tão alto — mas toda pedra arremessada — tem de cair!
Condenado a ti mesmo e a teu próprio apedrejamento: ó Zaratustra, arremessaste longe a pedra — mas sobre ti ela cairá!”
Então calou-se o anão; e isso durou muito. Mas seu silêncio me oprimia; e estar assim a dois é, em verdade, mais solitário do que estar a um!
Eu subia, subia, sonhava, pensava — mas tudo me oprimia. Eu semelhava um doente ao qual seu triste martírio torna cansado e que é despertado, ao adormecer, por um sonho ainda pior. —
Mas existe algo, em mim, que chamo de coragem: até agora, sempre matou em mim todo desânimo. Por fim, essa coragem me mandou parar e falar: “Anão! Ou tu, ou eu!” —
É que a coragem é o melhor matador — coragem que ataca: pois em todo ataque há fanfarra.
O homem, porém, é o animal mais corajoso: assim superou qualquer animal. Com fanfarra superou também qualquer dor; mas a dor humana é a dor mais profunda.
A coragem também mata a vertigem ante os abismos: e onde o ser humano não estaria diante de abismos? O próprio ver não é — ver abismos?
A coragem é o melhor matador: coragem também mata a compaixão. Mas compaixão é o abismo mais profundo: quanto mais fundo olha o homem no viver, tanto mais fundo olha também no sofrer.
Mas coragem é o melhor matador, coragem que ataca: ela mata até mesmo a morte, pois diz: “Isso era vida? Muito bem! Mais uma vez!”.
Mas há muita fanfarra num dito como esse. Quem tem ouvidos, que ouça. —

Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

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