sexta-feira, 10 de maio de 2024

Assim falou Zaratustra | 2


Alto lá, anão!”, falei. “Eu, ou tu! Mas eu sou o mais forte de nós dois —: tu não conheces meu pensamento abismal! Esse — não poderias suportar!” —
Então ocorreu algo que me fez mais leve: pois o anão pulou de meus ombros, por curiosidade! E foi se acocorar sobre uma pedra à minha frente. Mas havia um portal justamente ali onde paramos.
Olha esse portal, anão!”, falei também; “ele tem duas faces. Dois caminhos aqui se encontram: ninguém ainda os trilhou até o fim.
Essa longa rua para trás: ela dura uma eternidade. E a longa rua para lá — isso é outra eternidade.
Eles não se contradizem, esses caminhos; eles se chocam frontalmente: — é aqui, neste portal, que eles se encontram. O nome do portal está em cima: ‘Instante’.
Mas, se alguém seguisse por um deles — sempre mais adiante e mais longe: acreditas, anão, que esses caminhos se contradizem eternamente?” —
Tudo que é reto mente”, murmurou desdenhosamente o anão. “Toda verdade é curva, o próprio tempo é um círculo.”
Ó espírito de gravidade!”, falei irritado, “não tornes tudo tão leve para ti! Ou te deixo acocorado onde estás, perneta — e eu te trouxe bem alto!
Olha”, continuei a falar, “esse instante! Desde esse portal, uma longa rua eterna conduz para trás: atrás de nós há uma eternidade.
Tudo aquilo que pode andar, de todas as coisas, não tem de haver percorrido esta rua alguma vez? Tudo aquilo que pode ocorrer, de todas as coisas, não tem de haver ocorrido, sido feito, transcorrido alguma vez?
E, se tudo já esteve aí, que achas, anão, desse instante? Também esse portal não deve já — ter estado aí?
E todas as coisas não se acham tão firmemente atadas que esse instante carrega consigo todas as coisas por vir? Portanto — — também a si mesmo?
Pois o que pode andar, de todas as coisas, também nessa longa rua para látem de andar ainda alguma vez! —
E essa lenta aranha que se arrasta à luz da lua, e essa luz mesma, e tu e eu junto ao portal, sussurrando um para o outro, sussurrando sobre coisas eternas — não temos de haver existido todos nós?
e de retornar e andar nessa outra rua, lá, diante de nós, nessa longa e horripilante rua — não temos de retornar eternamente? —”
Assim falei eu, e cada vez mais baixo: pois temia meus próprios pensamentos e intenções ocultas. Então escutei, subitamente, um cão uivar na vizinhança.
Alguma vez escutei um cão uivar assim? Meu pensamento correu para trás. Sim! Quando era criança, na mais longínqua infância:
então ouvi um cão uivar assim. E também o vi, eriçado, com a cabeça voltada para cima, tremendo, na mais silenciosa meia-noite, quando também os cães acreditam em fantasmas:
de maneira que tive pena. Pois justamente então a lua cheia estava sobre a casa, mortalmente calada, justamente então se encontrava parada, uma redonda incandescência — parada sobre o telhado plano, como em propriedade alheia: —
com isso assustava-se o cão: pois os cães acreditam em ladrões e fantasmas. E, quando novamente escutei aquele uivo, tive pena mais uma vez.
Para onde tinha ido o anão? e o portal? a aranha? E todos os sussurros? Então eu sonhava? Acordei? Entre rochedos selvagens me achava eu de repente, sozinho, ermo, no mais ermo luar.
Mas ali jazia um ser humano! E ali estava o cão, pulando, eriçado, ganindo — viu-me chegar — uivou novamente, então gritou: — algum dia escutei um cão gritar assim por socorro?
E, em verdade, o que vi, jamais vira igual. Vi um jovem pastor contorcendo-se, sufocando, estremecendo, com o rosto deformado, e uma negra, pesada serpente que lhe saía da boca.
Alguma vez vi tanto nojo e pálido horror em um rosto? Havia ele dormido? E a serpente rastejou para dentro de sua garganta — e ali mordeu firmemente.
Minha mão puxou e tornou a puxar a serpente: — em vão! não conseguiu puxar a serpente da garganta. Então de dentro de mim se gritou: “Morde! Morde!
Corta a cabeça! Morde!” — assim se gritou de dentro de mim, meu horror, meu ódio, meu nojo, minha pena, tudo de bom e ruim gritou com um grito de dentro de mim. —
Ó ousados ao meu redor! Vós, tentadores, tenteadores, e quem, entre vós, tenha se lançado com velas astutas em mares inexplorados! Vós, amantes de enigmas!
Então interpretai-me o enigma que enxerguei, então interpretai-me a visão do mais solitário!
Pois era uma visão e uma premonição: — o que vi eu então em alegoria? E quem é esse que um dia terá de vir?
Quem é o pastor em cuja garganta a serpente entrou? Quem é o homem em cuja garganta entrará tudo de mais pesado, de mais negro?
Mas o pastor mordeu, tal como lhe disse meu grito; mordeu com boa mordida! Para longe cuspiu a cabeça da serpente —: e levantou-se de um salto. —
Não mais um pastor, não mais um homem — um transformado, um iluminado que ria! Jamais, na terra, um homem riu como ele ria!
Ó meus irmãos, escutei um riso que não era riso de homem — — e agora me devora uma sede, um anseio que jamais sossega.
Meu anseio por esse riso me devora: oh, como suporto ainda Assim falou Zaratustra.

Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

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