terça-feira, 30 de abril de 2024

Só um tiquinho


Dona Carmen, a senhora faz sopa maggi, a de pacotinho?, perguntou Isora para a velha. Não, minha filha, por quê? Diz a minha avó que a sopa maggi é sopa de putas. Ah, minha filha, sei lá eu. A sopa que faço eu faço com as galinhas que tenho. Dona Carmen estava meio tantã, mas era boa. Quase todo mundo a menosprezava, porque, como dizia a minha avó, ela fazia coisas que eram o fim da picada. Dona Carmen se esquecia de quase tudo, passava longas horas caminhando e repetindo rezas que ninguém conhecia, tinha um cachorro com os dentes de baixo saltados pra fora, saltados pra fora como os de um camelo. Vira-lata, vira-lata, chispa daqui e que o diabo te carregue, ela dizia. Às vezes pousava a mão na cabeça dele com carinho; outras, gritava fora daqui, cachorro, fora daqui, cão dos infernos. Dona Carmen se esquecia de quase tudo, mas era uma mulher generosa. Gostava que Isora a visitasse. Morava pra baixo da igreja, numa casinha de pedras pintadas de branco com a porta pintada de verde e as telhas velhas e cheias de limo e de lagartos e de lona de sapatos trazidos de Caracas, Venezuela, e de verodes grandes como arvorezinhas. Dona Carmen se esquecia de tudo, menos de descascar as batatas, isso sim ela sabia, descascava em círculos, punha as batatas num canto e com uma faca de cabo de madeira tirava a casca delas como se fosse um enorme colar. Dona Carmen fazia batatas fritas com ovos para lanchar. Isora levava as batatas e os ovos da venda da sua avó e dona Carmen guardava um pouquinho pro lanche de Isora e se eu ia junto, ela também me dava. Ela me dava, mas de mim dona Carmen não gostava tanto quanto gostava da Isora, isso eu já sabia. Isora sabia falar com as pessoas velhas. Eu me limitava a ouvir o que diziam. Vocês querem um tiquinho de café, minhas filhas? Não me deixam beber café, respondi. Eu, sim, um tiquinho, disse Isora. Só um tiquinho. Ela, sempre só um tiquinho. Experimentava tudo. Uma vez comeu comida de cachorro da que havia na venda para saber como era. Ela experimentava tudo e depois, se fosse necessário, vomitava. Eu tinha medo de que os meus pais sentissem na minha boca o cheiro de café e me pusessem de castigo, mas Isora nunca tinha medo. Não tinha medo, embora a avó lhe ameaçasse dar uma surra. Ela pensava que a vida era uma só e que era preciso experimentar um tiquinho sempre que tivesse a chance. E um tiquinho de licor de anis, minha filha? Só um tiquinho. Só um tiquinho. Só um tiquinho, dizia.
Isora bebeu a gotinha de café que restava na xícara da qual dona Carmen estava bebendo e, sem rodeios, esticou o braço para pegar o copinho que a velha tinha servido com Anís del Mono. Isora arrotou, arrotou umas cinco vezes seguidas. E depois bocejou. E nesse momento dona Carmen a segurou pelo queixo e olhou nos olhos dela, aqueles olhos verdes feito uvas verdes. Escavava os seus olhos lacrimosos como quem tira água de uma galeria. A velha ficou assustada: minha filha, você sabe se alguém tem inveja de você? Isora permaneceu imóvel. Por quê, dona Carmen? O que aconteceu? Minha filha, você tem mau-olhado. Vá, pelo amor de Deus, à casa da Eufracia, pra ela te benzer. Conte isso pra sua avó, que ela sabe dessas coisas e que ela te leve pra benzer.
Ao sair pela porta, estava passando a novela das cinco. A essa hora do dia, uma camada enorme de nuvens pousava sobre os telhados das casas do bairro. Não exibiam mais Pasión de Gavilanes, agora exibiam La mujer en el espejo. A protagonista era a mesma mulher que fez Gimena na Pasión, mas Isora e eu não gostávamos muito dela. Era junho, no bairro ainda não tinham posto as bandeirinhas coloridas das festas e ainda demoraria muito para que pusessem. Da janela da entradinha de dona Carmen dava pra ver o mar e o céu. O mar e o céu pareciam a mesma coisa, a mesma massa acinzentada e espessa de sempre. Era junho, mas podia ter sido qualquer outro mês do ano, em qualquer outra parte do mundo. Podia ter sido numa cidadezinha montanhosa do Norte da Inglaterra, um lugar em que quase nunca se visse o céu aberto e azul, azul, um lugar em que o sol fosse na verdade uma recordação distante. Era junho e fazia apenas um dia que as aulas tinham terminado, mas eu já estava sentindo essa exaustão imensa, essa tristeza de nuvens baixas sobre a cabeça. Não parecia verão. O meu pai trabalhava na construção e a minha mãe limpando hotéis. Eles trabalhavam no Sul e às vezes a minha mãe também ia limpar as casas de veraneio dos arredores, a minha casa ficava bem pertinho, em El Paso del Burro. Os meus pais saíam cedo pro Sul e voltavam tarde. Isora e eu ficávamos trancadas num conjunto de casas, pinheiros e ruas íngremes no alto do bairro. Era junho e eu estava sentindo tristeza. E agora, agora também medo.
Quando saímos pela porta da dona Carmen, um verme percorreu a minha garganta. Esse verme preto me dizia que eu já tinha, alguma vez, invejado Isora. Eu gostava da cor dos seus cabelos e dos seus braços. Gostava da sua letra. Ela fazia um g com um rabo gigante, que não permitia que se entendesse o que dizia a linha de baixo. Eu gostava dos seus olhos e de muitas outras coisas. Invejava o seu jeito de falar com as pessoas mais velhas. Ela era capaz de interromper as conversas e dizer não, a Moreiva é filha da Gloria, a da esquina, não da outra Gloria. Invejava os seus peitinhos redondos e macios feito uma jujuba com açucarzinho branco, embora ela mesma não gostasse deles. E porque ela tinha ficado mocinha e porque tinha pelos na perereca. Isora tinha bastante pelo preto, duro e pontudo como o gramado falso das casas de veraneio. Eu invejava ela por causa do seu cartucho de jogos para o gameboi, pirateado por um primo seu de segundo grau que mexia com informática e morava em Santa Cruz. Invejava ela porque o cartucho tinha o jogo do Hamtaro e eu adorava o jogo do Hamtaro.
Isora não tinha mãe. Vivia com a sua tia Chuchi e com a sua avó Chela, a dona da venda do bairro. De ela não ter mãe, disso eu não tinha inveja, pra falar a verdade. De ela não ter mãe e de ser cuidada pela tia e pela avó eu não tinha inveja, pra falar a verdade. Do que eu então tinha medo, na verdade, era de que dissessem a ela que eu lhe joguei mau-olhado. Chela, a avó da Isora, era uma mulher que acreditava muito nessas coisas. Se ficasse sabendo que eu tinha feito isso à neta, ia esmagar a minha cabeça. A avó da Isora era uma mulher gorda e bigoduda. Gorda e bigoduda e briguenta. Seu verdadeiro nome era Graciela, mas todo mundo a chamava de Chela, a da venda. Era muito religiosa, mas muito boca suja. E por ser tão religiosa também a chamavam de Chela, a santa. Chela, a santa, porque todo o tempo livre que tinha, que era bem pouco, ela dedicava a rezar e a falar com o padre e a decorar a igreja com orelhas-de-burro e samambaias que ela cortava do lado de fora da casa, além de véu-de-noiva, véu como penugens brancas caindo do céu. Mas, por outro lado, a avó de Isora adorava explicar a todas as meninas coisas sobre gordura. Ou, antes, sobre magreza. Para ficar magra é preciso comer de um prato pequeno, ela dizia, e para ficar magra é preciso comer menos batata frita, e uma batata frita é como comer duas batatas cozidas, e o que essas cretinas têm que fazer é parar de comer tanta guloseima, e o que vou dar a essa menina é uma surra de cinta pra ela deixar de comer merda, e eu mantenho a menina na dieta porque ela já está ficando enorme, e se eu deixar ela vira uma bola, e dá-lhe comer jujubas e engordar feito um animal, e come-come e depois lá vem a caganeira e ela passa três dias no banheiro feito um tabobo, e come-come e depois ouço ela botando pra fora, a safada põe tudo pra fora e com caganeira, e come e caga e põe pra fora e depois se enche de fortasec como se fossem cápsulas de jujubas, e come e caga e caga e caga e põe pra fora que nem um bicho e quando se espreme que parece que não cabe mais nem mais um fiapo pelo cu ela põe os supositórios pra cagar outra vez. E vai me ficar doente e vai me adoecer de tanto comer, essa menina, essa garota dos infernos.
Isora odiava a avó com todas as forças. No colégio uma vez ela aprendeu que bitch significava puta, e desde então sempre que a avó lhe dizia leva pra dona Carmen os ovos e as batatas, é pra cobrar da mulher, traz duas caixas de músculo pra moça aqui, quatro pães, duzentos gramas de queijo amarelo, duzentocinquenta gramas de queijo de cabra, põe um pedaço de goiabada pra moça aqui, um saco de batatas, sobe uns camarões, cobra do estrangeiro, que você sabe falar inglês, eu só sei falar em bom castelhano, Isora respondia certo, bitch, estou indo, bitch, está bem, bitch, o que quiser, bitch, obrigada, bitch, alguma coisinha mais, bitch? E a avó olhava meio desconfiada, mas Isora dizia que bitch significava avó em inglês.
Na venda também trabalhava Chuchi. Chuchi, a tia da Isora, a segunda filha da Chela. Todo mundo chamava Chuchi de Chuchi, mas ninguém sabia qual era o seu nome de verdade. Chuchi tinha os olhos verdes como Isora, mas com manchas como de café derramadas na parte branca. Como manchas de café no fundo da xícara. Chuchi era alta, magra, pernas compridas, chupada, seca. Não se parecia com Isora, a não ser pelos olhos. Nunca ninguém a tinha visto com namorado e ela não tinha filhos. Chuchi também era muito de estar na igreja, mas o seu sonho não era ser santa, como a mãe, e sim vendedora. Durante um tempo ela vendeu maquiagem para a cara e cremes e sabão para o cabelo e sabão para o corpo para as vizinhas do bairro. Andava com sua roupa de secretária, com um bleiser verde, como os seus olhos verdes, e uma saia verde, como os olhos verdes da Isora, e umas botas marrons com salto quadrado e uma pasta com as revistas da Avon nas quais mostrava os produtos, casa por casa. A mãe dizia às pessoas que a filha estava se estragando, pois estava toda oferecida, o dia todo pelas veredas.
Subimos pela rodovia até passar na frente da venda. Isora não parou para falar com a avó. Aonde vocês estão indo? Não conseguem parar em casa?, gritou Chela no balcão cheio de gente. A única coisa que fazem é ficar bisbilhotando poraí? Isora continuou subindo a ladeira como se nada. Eu a segui e olhei para Chela e Chuchi. Chuchi cortava embutidos com a cabeça baixa, escutando as rezas da Chela, como se tivesse um peso pendurado no pescoço, a presença pesada da mãe feito um falcão pousado nos ossos das costas. Vamos pra casa da Eufracia, pra ela me benzer, essa bitch não vai ficar sabendo, me disse Isora. E de novo o verme preto. Eu sabia bem pouco sobre o mau-olhado. Sabia que nos bebês de colo, que são avermelhados e carecas e feios e sem dentes e com a cabeça cheia de crostas, punham um lacinho vermelho no carrinho porque as mães e as avós tinham medos. Medos, dizia vovó, do mau-olhado. Se as gentes olhavam os bebês de colo por muito tempo nos olhos ou lhes diziam muitas coisas bonitas, que bebê tão bonito, deus o guarde, deus o guarde, quanto tempo tem, que bonito, as mães e as avós ficavam mais duras que a perna de um morto. Quando a vovó via um bebê recém-nascido, a primeira coisa que fazia era fazer-lhe o sinal da cruz e repetir Deus o guarde e o abençoe dos pés à barriga. Dos pés à barriga e daí pra cima nada, pensava eu. Por isso eu achava que o mau-olhado era jogado nessa parte do corpo, na região da perereca e da bunda e dos pelos das pernas, eu queria que a minha mãe me depilasse e ela não me depilava. Isora e eu fazíamos muitas coisas nessa região do corpo, dos pés até a barriga. Sobretudo na região da perereca. Então talvez o mau-olhado tivesse a ver com isso. Mas fiquei quieta e não disse nada, fiquei quieta e continuamos a andar.

Andrea Abreu, in Pança de burro

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