domingo, 21 de abril de 2024

O vento sul noturno que varria o litoral


É lógico que Abbey Hanley nunca teve a intenção de destruí-lo.
Foi só uma dessas coisas da vida.
Mas uma coisa dessas acaba virando outras, que incorrem em mais coincidências, que, por sua vez, muitos anos depois, incorrem em garotos e cozinhas, garotos e ódio — e, sem aquela menina perdida tanto tempo antes, não teria havido nada:
Nem Penélope.
Nem garotos Dunbar.
Nem ponte, nem Clay.

***

Tantos anos antes, tudo era claro e lindo para Michael e Abbey.
Ele a amava com linhas e cores.
Ele a amava mais do que a Michelangelo.
Ele a amava mais do que a Davi e outras estátuas de escravos extenuados.
Tanto ele quanto Abbey se formaram na escola com boas notas, boas o suficiente para a cidade grande, números de fuga e de deslumbramento.
Ele até ganhou um ou outro tapinha nas costas.
Alguns parabéns.
Mas, de vez em quando, ele também era alvo de um leve desprezo, como se não entendessem por que teria vontade de ir embora dali. Essa era uma especialidade dos homens, sobretudo os mais velhos, o rosto curtido, um dos olhos sempre cerrado contra o sol. Os comentários eram bem tendenciosos:
Então você vai pra cidade grande, é?
Sim, senhor.
Senhor? Que porra é essa? Você ainda nem se mudou!
Cacete, desculpa...
Tudo bem, mas vê se não deixa eles te transformarem em um cuzão, ouviu?
Como?
Você me ouviu muito bem... Não deixa eles mudarem você, como acontece com todo filho da puta que vai embora daqui. Nunca se esqueça de onde veio, sacou?
Tá.
Ou do que você é.
Tá.
Bom, Michael Dunbar certamente vinha de Featherton e era um filho da puta, potencialmente um cuzão. O problema foi que ninguém nunca disse a ele: “E não dê motivos para chamarem você de Assassino.”
O mundo lá fora era grande demais, e as possibilidades, infinitas.

***

No dia em que o resultado saiu, bem na época do Natal, Abbey contou a ele que ficara esperando do lado da caixa de correio. Ele até poderia pintar a cena:
Uma imensidão de céu aberto.
A mão na cintura.
Ela torrando no sol por uns vinte minutos antes de voltar lá dentro para buscar uma cadeira de praia e um guarda-sol, mesmo a milhares de quilômetros do mar. Depois, indo buscar uma bolsa térmica e uns picolés; minha nossa, ela precisava desesperadamente dar o fora daquele lugar.
No centro da cidade, Michael arremessava tijolos para um cara em um andaime que, por sua vez, os arremessava para outro cara. Em algum lugar bem mais alto, alguém estava assentando aqueles tijolos, e um novo pub tomava forma: para mineiros, fazendeiros e menores de idade.
Na hora do almoço, ele foi para casa andando e avistou de longe o seu futuro, dobrado e quase caindo do cilindro reservado para panfletos de propagandas da caixa de correio.
Ignorando o mau agouro, ele abriu a carta. Sorriu.
Ligou para Abbey e ela atendeu ofegante, pois tinha acabado de correr para dentro de casa.
Ainda estou esperando! Essa merda de cidade parece que faz questão de me segurar aqui durante mais uma hora ou duas, só para me castigar.
Mais tarde, porém, quando ele já tinha voltado ao trabalho, ela apareceu por lá e parou atrás dele. Michael olhou para trás, largou os tijolos, um de cada lado, e se virou para encará-la.
E aí?
Ela assentiu.
Ela soltou uma risada, e ele também, até que uma voz veio lá de cima e pousou entre eles.
Ô Dunbar, seu pirralho! Manda a porra do tijolo, caralho!
Abbey gritou de volta, na lata:
Poesia!
Abriu um sorriso e partiu.
Semanas depois, eles partiram.

***

Sim, eles fizeram as malas e se mudaram para a cidade grande, e como posso resumir aqueles quatro anos de uma aparente felicidade idílica? Se Penny Dunbar era muito boa em usar a parte para contar o todo, essas partes não passavam disto: meros fragmentos e momentos efêmeros.
Viajaram onze horas de carro, até que avistaram o horizonte da cidade.
Pararam no acostamento para admirar toda a sua extensão, e Abbey subiu no capô.
Continuaram dirigindo até que se viram dentro dela, e parte dela, a garota correndo atrás de seu diploma em administração, enquanto Michael pintava e esculpia, penando para se manter entre os gênios que o cercavam.
Ambos tinham trabalhos de meio expediente:
Uma era garçonete numa boate.
O outro trabalhava na construção civil.
À noite, se atiravam na cama, e um no outro.
Eram duas peças que se encaixavam.
Estação após estação.
Ano após ano.
De quando em vez, passavam a tarde na praia comendo peixe frito com batatas e observando as gaivotas surgirem como em um passe de mágica, como coelhos saindo da cartola. Sentiam a miríade de brisas do mar, cada qual sempre diferente da anterior, e o peso do calor e da umidade. Às vezes, permaneciam sentados enquanto uma gigantesca nuvem preta acimava o horizonte, como uma nave-mãe, então saíam correndo com a chegada da chuva. Era uma chuva que se assemelhava à própria cidade, com seu vento sul noturno que varria o litoral.
Também havia efemérides e aniversários; em uma dessas datas em especial, ela o presenteou com um livro — uma linda edição em capa dura com letras douradas — chamado O marmoreiro, e Michael varou as madrugadas lendo, noite após noite, enquanto ela dormia deitada em suas pernas. Antes de fechar, ele sempre voltava ao início, à página com a minibiografia do autor, na qual, logo abaixo, bem no meio da folha, ela escrevera:

Para Michael Dunbar, o único homem
que eu amo, e amo, e amo.
Com carinho, Abbey

Pouco depois, é claro, houve o momento de voltar à cidade natal para se casarem, em um dia tranquilo de primavera, com os corvos crocitando do lado de fora da igreja como piratas em terra firme:
A mãe de Abbey chorava de alegria na primeira fileira.
Seu pai trocara a costumeira camiseta puída de trabalho por um terno.
Adelle Dunbar estava sentada ao lado do bom doutor, olhos marejados por trás dos óculos novinhos em folha, de armação azul.
Houve Abbey chorando, toda molhada, vestido branco e fumaça.
Houve Michael Dunbar, o jovem, carregando-a no colo para o sol que brilhava lá fora.
Houve a viagem de volta dias depois, e a parada no meio do caminho, no ponto onde o rio era uma coisa extraordinária, delirante, com uma correnteza violenta — um rio com um nome estranho, mas que eles amavam: Amahnu.
Houve o momento de ficarem deitados ali, sob a árvore, o cabelo dela fazendo cócegas nele, e ele fazendo questão de não afastá-lo, jamais, e Abbey dizendo que adoraria voltar àquele lugar, e Michael afirmando:
Claro, vamos trabalhar, juntar dinheiro e construir uma casa, para voltar aqui sempre que quisermos.
Houve Abbey e Michael Dunbar:
Dois dos filhos da puta mais felizes que já tiveram a audácia de deixar a cidade.
Sem saber tudo que estava por vir.

Markus Zusak, in O construtor de pontes

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