quinta-feira, 28 de março de 2024

A Crise by Night

De vez em quando a gente lê no jornal um camarada declarando qualquer coisa como “a palavra crise não existe no meu dicionário”. Acho isso admirável, admirabilíssimo, porque se trata de um talento que a Providência me negou de forma absoluta, não me deu nem um micrograma. Deu-me, contudo, a frequente oportunidade de ler afirmações como essa e me dadivou também um número certamente excessivo de amigos que tampouco acreditam na crise. Um deles me convidou para sair, no sábado passado (eu novamente de cigarro e solenemente ignorado por todas as minhas ídolas), tomar uns drinques, jantar e bater um papo com o pessoal. Sentado diante de um pavoroso livrão que insensatamente resolvi escrever e que já me deixa zonzo com personagens e cronologias, achei que era bom alívio. Um dos personagens — um tal cônego que em má hora incluí nos convidados de um passeio — não cala a boca há 40 laudas, está ficando cada vez mais difícil aturá-lo. Mas há um senão: exatamente a mania de ficar escrevendo sobre o cônego e mais outros sujeitos desinteressantes, em vez de ganhar a vida honestamente abrindo por exemplo uma empresa de caderneta de poupança, preclude o meu comprometimento com desembolsos mais elevados, notadamente na rubrica entretenimento/pifão, já que meu cash-flow não é dos mais famosos. Em outras palavras, estou sempre duro. Fiz ver esta circunstância ao meu amigo.
Ah, eu também! — respondeu ele alegremente. — Primeiro, nós passamos no Antônio’s!
Não compreendi. Eu duro, você duro...
Ao Antônio’s!
Concordei. Tenho muita confiança nos amigos. Contudo, ao marchar pela rua abaixo, não podia deixar de estremecer, lembrando do dia em que, para mais um papo com um editor alemão (que, por sinal, ainda não editou nada), dei uma de noblesse oblige e o convidei para encontrar-me no Antônio’s. Enquanto eu, com prudência e frugalidade, alegava problemas estomacais e traçava prolongadamente uma garrafinha (acabei tomando duas) de água tônica, meu convidado pegou uns três runs com coca-cola. Na saída, aquela presepada toda: não senhor, eu pago, deixe comigo! Como nas piadas, o brasileiro venceu: paguei a conta. Cheguei em casa pálido, tive de tomar um daqueles calmantes homeopáticos para palpitações. E agora, como seria?
Terminei não descobrindo, não dá para perceber. A noite chegou festiva ao bar, ele se desvencilhou das contas como um mago e, cercado por um cortejo sorridente e amabilíssimo de garçons e manobristas, acenou-me para acompanhá-lo a seu carrão. Dentro do carro, vi-o dobrar um bolo de notas e pô-lo no bolso, murmurando “é sempre bom ter um trocadinho”. Como? Como podia ser aquilo, se poucos momentos antes ele revirava os bolsos para me mostrar como estava ainda em pior situação do que eu? Que milagre era aquele?
É o troco — respondeu ele, arrancando com brio. — Ao Florentino!
Não perguntei mais nada. No Florentino, pediu “minha garrafa aí!”, congregou novo grupo de amigos à mesa, apalavrou duas casas em Búzios, analisou o socialismo moreno e convidou uma moça para “uma volta em Nova Iorque uma hora dessas, nesta época do ano está uma beleza”. Com a noite cada vez mais florida e animada, ele me perguntou se eu não queria jantar.
Jantar? Sim, é uma boa. Aqui? Eu...
Ao Hippopotamus!
Mas...
Pegando mais um pouco de troco no caixa, ele chegou rapidamente ao Hippopotamus. Um leão de chácara (lá pode ser que seja country-house lion, mas é a mesma coisa) sorriu reluzentemente, abriu a porta, ele entrou, deu um beijinho na moça da recepção, perguntou com exuberância:
Tudo bem, meu amor? Minha mesa?
A mesa dele estava lá, sim senhor, o maître veio conversar, sugeriu um pratinho especial (quanto aos drinques, já estávamos tomando uísque da garrafa dele, que chegou antes de nós à mesa). Depois de consultar-me com grande fidalguia, ele deu algumas instruções adicionais ao maître, garantiu-me que eu iria gostar muito daquele prato, dedicou o resto da noite a conversar e a acenar para praticamente todo mundo que passava: tudo bem aí, querida? como vai, meu bem? beijos, beijos! Saímos já bem tarde, ele com a alegria do poder e do reconhecimento social, eu com o contentamento recatado que nos traz a boca-livre. Como estava com sono, temi que ele desse novo brado de guerra, quisesse fretar um jatinho para dar um pulo ao Maxim’s ou qualquer coisa assim. Mas ele também tinha ficado com sono.
Bom, agora vamos encerrar — disse ele. — Amanhã tenho de trabalhar.
Mas amanhã é domingo.
E o que é que você pensa? Você pensa que eu tenho folga? Eu trabalho no domingo também e assim mesmo não dá! O dinheiro não chega para nada! Você sabe que eu fico imaginando onde é que nós vamos parar? Você veja nós dois: trabalhamos como um par de cavalos e só vivemos na pior! Está certo isto?
Não estava certo, claro. Entramos no carro, lembrei-me subitamente de um detalhe.
Desta vez você esqueceu de pegar o troco.
Ah, tudo bem — disse ele. — Aqui eu não pago.
Uma experiência como essa não pode deixar de ser inspiradora. Eu mal podia esperar a volta de minha mulher para introduzir a nova política da casa.
Mulher! — falei, assim que ela chegou, na segunda-feira. — A palavra crise não existe no meu dicionário!
Que tal bancarrota? — perguntou ela.

João Ubaldo Ribeiro, in O rei da noite

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