quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Como um furacão


A cidade estava sombria, mas viva.
Dentro do carro, o silêncio.
Não restava nada além da volta para casa.
Mais cedo, veio a cerveja, compartilhada com certeza.
Sumido, Sininho, Maguire.
Schwartz e Starkey.
Todos ganharam uma graninha, inclusive o tal do Lepra, que tinha apostado em catorze minutos redondos. Quando começou a se vangloriar, os outros meninos disseram na lata que ele deveria era se preocupar em fazer um transplante de pele, isso, sim. Henry ficou com o resto do dinheiro. Tudo isso se deu sob um céu rosa-acinzentado. O melhor grafite da cidade.
Em determinado momento, Schwartz estava contando a eles aquela sacanagem dos cuspes na linha dos duzentos metros, quando a garota, de bobeira com Starkey no estacionamento, fez a pergunta.
O que aquele garoto tem? — Essa não era a questão em questão, no entanto, logo ficaria claro qual era. — Correndo daquele jeito. Brigando daquele jeito... — continuou ela, pensando um pouco e depois bufando. — Que brincadeira ridícula é essa de vocês? Seus imbecis!
Imbecis... — repetiu Starkey. — Valeu!
Ele a abraçou como se tivesse acabado de receber um elogio.
Ei, gatinha!
Henry.
Garota e gárgula se viraram para olhar, e Henry deu um sorrisinho contido.
Não é uma brincadeira, é treino!
Ela pôs a mão no quadril, e já dá para imaginar o que a garota com a alcinha de renda caída perguntou depois. Henry fez o que pôde para satisfazer a curiosidade dela.
Certo, Clay, ajuda a gente a entender. Você treina tanto pra quê?
Só que Clay não estava prestando atenção ao ombro da garota. Estava concentrado no arranhão na bochecha que não parava de latejar, cortesia do bigode de Starkey. Com a mão boa, mexeu no bolso, resoluto, então se agachou.
É importante mencionar que o propósito dos treinos de nosso irmão era um mistério igualmente incompreensível para ele também. Clay só sabia que estava se preparando e esperando pelo dia em que compreenderia — e o dia, por acaso, era aquele. A resposta estava à espera, em casa, na cozinha.

***

Rua Carbine e travessa Empire, e então um trecho da Poseidon.
Clay sempre gostou daquele caminho para casa.
Gostava das mariposas no alto, amontoadas nos postes de luz. Ele se perguntava se a noite as deixava agitadas ou calmas; em todo caso, conferia propósito a elas. As mariposas sabiam o que fazer.
Logo chegaram à rua Archer.
Henry: dirigindo com uma só mão, sorrindo.
Rory: pés apoiados no painel.
Tommy: meio adormecido por cima da cachorra ofegante.
Clay: sem saber que chegava a hora.
Por fim, Rory não aguentou mais... a calmaria.
Porra, Tommy, essa cachorra precisa mesmo respirar tão alto?
Três deles deram uma risada curta e seca.
Clay olhava pela janela.
Henry podia dar a impressão de ser um doido ao volante, jogando o carro na calçada de qualquer jeito, mas não, ele não era assim.
Ligou a seta em frente à casa da sra. Chilman, a vizinha.
Fez uma curva suave na entrada da nossa garagem — tão suave quanto aquele carro permitia.
Faróis desligados.
Portas abertas.
A única coisa que traiu a paz absoluta foi fechá-las, quatro tiros disparados na direção da casa.
Juntos, atravessaram o gramado.
O que tem pra comer? Algum tonto aqui sabe?
Sobras de ontem.
Imaginei.
Os pés passaram pela varanda.

***

Lá vêm eles — falei. — Melhor você se preparar pra dar o fora daqui.
Entendi.
Você não entendeu nada.
Naquele momento, eu tentava compreender por que tinha deixado o homem ficar. Poucos minutos antes, quando ele me contou a razão de ter dado as caras, minha voz ricocheteou na louça e voou até a garganta do Assassino:
Você quer o quê?!?
Talvez fosse a crença de que a história já estivesse em curso; aconteceria de qualquer jeito e, se fosse aquele o momento, paciência. Além disso, apesar do estado lastimável do Assassino, eu sentia algo mais ali. Havia um quê de resolução, e, claro, expulsá-lo teria sido um prazer e tanto — ah, agarrá-lo pelo braço! Erguê-lo. Enxotá-lo porta afora. Jesus, teria sido lindo pra cacete! Mas nos deixaria vulneráveis. O Assassino poderia voltar a agir quando eu não estivesse por perto.
Não. Melhor assim.
A melhor maneira de controlar a situação seria nos juntarmos, nós cinco, numa demonstração de força.
Não, espera aí.
Nós quatro, e um traidor.

***

Daquela vez, foi instantâneo.
Henry e Rory não tinham farejado o perigo antes, mas, ali dentro da casa na rua Archer, ele era palpável. Havia cheiro de discussão no ar, e de bituca de cigarro.
Shhh — fez Henry, esticando o braço para trás. — Cuidado.
Eles seguiram pelo corredor.
Matthew?
Aqui.
Absorta e profunda, minha voz confirmou tudo.
Por alguns instantes, os quatro se entreolharam, em alerta, confusos, pesquisando em um arquivo interno algum registro do próximo passo.
Henry de novo:
Tá tudo bem com você, Matthew?
Tudo tranquilo! Vem cá!
Eles deram de ombros, conformados.
Não havia mais razão para não entrarem, então, um a um, dirigiram-se à cozinha, onde a luz parecia um encontro entre mar e rio, o amarelo se transformando em branco.
Eu estava diante da pia, de braços cruzados. Atrás de mim estava a louça, limpa e reluzente, como uma peça rara e exótica de museu.
esquerda dos meus irmãos, à mesa, estava ele.

***

Céus, dá para ouvir daí?
O coração deles?
A cozinha virou um pequeno continente à parte, os quatro garotos se movimentando em uma terra de ninguém, em uma espécie de migração em grupo. Quando chegaram à pia, ficamos aglomerados, Aurora entre nós. É curioso como funcionam os garotos; não nos incomodamos com contato físico — ombros, cotovelos, articulações, braços —, e todos encaramos nosso agressor, que se encontrava sentado, sozinho, à mesa. Uma pilha de nervos da cabeça aos pés.
O que pensar numa hora dessas?
Cinco garotos e pensamentos embaralhados, e Aurora com os caninos à mostra.
Sim, a cachorra instintivamente o desprezava também, e foi ela quem quebrou o silêncio: rosnou e se preparou para avançar no homem.
Calmo e contundente, estendi a mão.
Aurora.
Ela parou.
O Assassino logo abriu a boca.
Nada saiu.
A luz estava branca feito aspirina.

***

A cozinha então começou a se abrir, ou pelo menos se abriu para Clay. O restante da casa ruiu, e o quintal cedeu, sucumbiu ao nada. A cidade e o subúrbio e todos os campos abandonados foram destroçados e assolados em uma onda apocalíptica, negra. Para Clay só havia aquele lugar, a cozinha, que num fim de tarde passara de zona climática a continente, e agora isto:
Um mundo de mesa-e-torradeira.
De irmãos e suor à beira da pia.
A atmosfera ainda estava opressiva, quente e granulada, como o ar antes de um furacão.
O Assassino parecia estar com a cabeça longe, como se considerasse todos esses elementos, mas logo a içou de volta. Agora, pensou ele. Preciso agir agora. Então agiu, um esforço colossal de sua parte. Levantou-se, e havia algo de aterrorizante em sua tristeza. Ele havia imaginado aquele momento inúmeras vezes, mas chegou ali oco, esvaziado. Uma casca de tudo que era. Poderia muito bem ter surgido do armário ou de debaixo da cama:
Um monstro manso e confuso.
Um pesadelo, de repente mais vívido do que nunca.

***

Mas então — de repente —, era o bastante.
Fez-se uma declaração silenciosa, e os anos de sofrimento equilibrado não seriam tolerados nem mais um segundo; a corrente rachou e por fim se quebrou. A cozinha já tinha visto de tudo aquele dia, e então todo aquele movimento cessou e se resumiu a cinco corpos o encarando. Cinco garotos estavam unidos, lado a lado, mas um deles estava sozinho, exposto — pois já não tocava irmão algum —, apreciando e detestando a situação. Ele a abraçou, lamentou por ela. Só lhe restava dar aquele passo em direção ao único buraco negro da cozinha:
Enfiou a mão no bolso mais uma vez e, quando a tirou, segurava pecinhas. O garoto as exibiu — mornas e vermelhas e plásticas —, as partes de um pregador de roupa despedaçado.
Depois disso, o que restava?
Clay o instigou, a voz brotando no silêncio, emergindo da escuridão rumo à luz:
Oi, pai.

Markus Zusak, in O construtor de pontes

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