domingo, 27 de agosto de 2023

A lucidez alucinada dos britânicos do Monty Python


Bom dia, por gentileza, eu gostaria de um artigo sobre o Monty Python.
Se esse artigo fosse uma cena do Flying Circus, talvez começasse com uma pessoa pedindo alguma coisa, educadamente — provável que fosse o Michael Palin, o mais educado do grupo, ou Graham Chapman, o clássico straight man. O atendente, se fosse John Cleese, talvez atacasse o cliente com uma banana. Se fosse Eric Idle, pode ser que respondesse em anagramas. Terry Jones iniciaria uma inquisição espanhola, enquanto Chapman ou Idle permaneceriam atônitos — até que um pé gigantesco, desenhado por Terry Gilliam, esmagaria a todos — ou algo totalmente diferente.

1999 — Muito antes do WhatsApp, já compartilhávamos toda sorte de vídeos, de todo tipo de conteúdo, por fitas de VHS devidamente rebobinadas mas, assim como no WhatsApp, compartilhava-se sobretudo pornografia — ao menos entre os meus amigos.
O Rafael Queiroga era o cara mais popular da turma de terça-feira do teatro Tablado, aula da Cacá Mourthé. Eu tinha treze e ele tinha dezesseis. Isso fazia dele uma espécie de ancião, portador das novidades do mundo lá fora. E ele tinha me abençoado com sua amizade. Um dia ele me deu um VHS surrado de capa muito colorida onde estava escrito: Monty Python ao vivo no Hollywood Bowl. Não parecia pornô. Merda.
Chegando em casa, a conclusão definitiva: não era pornô. “Isso é muito engraçado. Mas não era pra ser engraçado. Tem alguma coisa errada com isso. Mas eu tô achando muita graça. Tem alguma coisa errada comigo.” Eram muitas sensações ao mesmo tempo. Fiquei obcecado.
Passei a vida tentando entender por que aquilo me fazia rir. Passei a perseguir com unhas e dentes essa coisa estranha que te faz rir sem você saber por quê.

1970 — Monty Python surge no momento mais louco do século, na cidade mais louca do mundo. Quantidades industriais de maconha eram combinadas com doses cavalares de drogas sintéticas e alguns alucinógenos naturais. No entanto, estranhamente, os Python passaram ao largo de tudo isso.
Ao contrário daquele outro grupo de meninos ingleses que mudaram o mundo, os Python tiveram uma vida acadêmica intensa — e uma vida social pacata. De um lado, Cleese, Chapman e Idle fizeram respectivamente direito, medicina e literatura em Cambridge — e se conheceram nos Footlight, o clube de teatro universitário mais famoso do país. Do outro, Palin e Jones estudaram história e literatura em Oxford — encontraram-se no Oxford Revue, o segundo clube de teatro mais famoso do país. Gilliam, o sexto integrante, não estudou — “ele é americano”, explica Cleese.
Talvez porque fossem estudiosos demais, talvez porque a comédia, mesmo a mais louca, exige certa sobriedade, Eric Idle afirma que nunca escreveram nenhum esquete sob a influência de droga alguma — a não ser por Graham Chapman, que bebia industrialmente, mas, em compensação, quase não escrevia. Acredite se quiser: os Python passaram os swinging sixties em reuniões de redatores — escrevendo, escrevendo, escrevendo e vez ou outra discutindo com furor se uma piada tinha graça. Por incrível que pareça, a revolução do humor se deu sem ajuda de psicotrópicos — e foi amplamente televisionada.
O convite da BBC partiu de Barry Took — um humorista consagrado — que reuniu os jovens redatores mais talentosos do mercado e deu-lhes o sonho de qualquer redator: carta branca total. A ideia era romper com a tradição da TV inglesa — coisa dificílima, porque a TV inglesa já era muito louca. O humor absurdo, graças a Peter Cook e Dudley Moore, estava em voga. David Frost e Marty Feldman destilavam um humor nonsense no horário nobre — com textos dos próprios Python. Em 1969, Spike Milligan estreia um programa mais ensandecido do que qualquer episódio do Flying Circus conseguiria ser — já havia em Milligan o clássico final metalinguístico usado em abundância pelo grupo nos anos seguintes: “Esse é o pior esquete em que eu já estive”, “Vamos terminar esta cena?”, “Vamos”.
Para revolucionar a loucura que imperava, o ingrediente surpresa dos Python foi a lucidez. Embora hoje o nome dos Python seja evocado sempre que se fala em humor nonsense, não acredito que seja essa a grande contribuição do grupo. Vale lembrar que o Flying Circus surge quarenta anos depois do movimento surrealista e vinte anos depois do teatro do absurdo.
Se te vendem um papagaio morto e você dá em troca uma cacatua manca, você caiu no nonsense — e perdeu o espectador. O humor dos Python reside no fato de que um dos personagens sabe que o papagaio está morto enquanto o outro se recusa a percebê-lo — a tensão entre a loucura de um e a lucidez do outro prende o espectador na cadeira. Ele ri de nervoso. A grande novidade explosiva que caracteriza o pythonesco não é a comédia alucinógena, mas, muito pelo contrário, a interpretação realista de um universo alucinado.
A piada nunca é sublinhada pela interpretação. O ator costuma apontar para uma direção contrária à do texto. Embora John Cleese seja um mestre do humor físico, enquanto suas pernas chutam o vento e sua voz alcança 10 mil decibéis, seu rosto permanece impassível. Seu olhar permanece inalterado. À psicodelia vigente eles acrescentaram a impassibilidade inglesa (ou, se preferirem, a fleuma), além de uma crítica social ferina — dessa ninguém escapa.
O último filme do grupo, O sentido da vida, dispensou o contato com a realidade: está mais pra Buñuel que para Monty Python. E, assim como os filmes de Buñuel, tem momentos geniais — mas não me provoca gargalhadas. Vale a pena ver — mas não se compara aos filmes anteriores, Em busca do Cálice Sagrado e A vida de Brian.
Nos dois filmes, a trajetória do protagonista mantém um pé no real enquanto os coadjuvantes mais inusitados surgem para confrontá-lo: cavaleiros que dizem ni, um Pôncio Pilatos com língua presa. Graham Chapman, o Python mais louco, interpreta os dois protagonistas com uma seriedade emocionante. Sua lucidez — a palavra fundamental — torna hilária a loucura ao seu redor. Vale também lembrar que muitas vezes o que parece puro delírio é uma crítica corrosiva. A vida de Brian bate mais forte na Igreja do que qualquer vídeo do Porta dos Fundos — e gerou reações ainda mais odientas. Salve a lucidez, mãe da comédia. Salve Monty Python, inventor da lucidez alucinada.

2014 — Os cinco vão se apresentar em Londres. O motivo da reunião inédita não é a saudade — é uma dívida de 800 mil libras com um antigo produtor que processou o grupo, além da pensão de 600 mil libras que Cleese paga anualmente para sua ex-mulher.
Ninguém sabe qual vai ser o conteúdo do show. Talvez tenha material novo. Talvez eles reencenem velhas esquetes. Não importa. Estarei lá. Todos nós, do Porta dos Fundos, estaremos. O motivo? Também temos uma dívida a pagar — incalculável.

Gregório Duduvier, in Put some farofa

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