— Bom
dia, por gentileza, eu gostaria de um artigo sobre o Monty Python.
Se
esse artigo fosse uma cena do Flying Circus, talvez começasse
com uma pessoa pedindo alguma coisa, educadamente — provável que
fosse o Michael Palin, o mais educado do grupo, ou Graham Chapman, o
clássico straight man. O atendente, se fosse John Cleese,
talvez atacasse o cliente com uma banana. Se fosse Eric Idle, pode
ser que respondesse em anagramas. Terry Jones iniciaria uma
inquisição espanhola, enquanto Chapman ou Idle permaneceriam
atônitos — até que um pé gigantesco, desenhado por Terry
Gilliam, esmagaria a todos — ou algo totalmente diferente.
1999
— Muito antes do WhatsApp, já compartilhávamos toda sorte de
vídeos, de todo tipo de conteúdo, por fitas de VHS devidamente
rebobinadas mas, assim como no WhatsApp, compartilhava-se sobretudo
pornografia — ao menos entre os meus amigos.
O
Rafael Queiroga era o cara mais popular da turma de terça-feira do
teatro Tablado, aula da Cacá Mourthé. Eu tinha treze e ele tinha
dezesseis. Isso fazia dele uma espécie de ancião, portador das
novidades do mundo lá fora. E ele tinha me abençoado com sua
amizade. Um dia ele me deu um VHS surrado de capa muito colorida onde
estava escrito: Monty Python ao vivo no Hollywood Bowl. Não parecia
pornô. Merda.
Chegando
em casa, a conclusão definitiva: não era pornô. “Isso é muito
engraçado. Mas não era pra ser engraçado. Tem alguma coisa errada
com isso. Mas eu tô achando muita graça. Tem alguma coisa errada
comigo.” Eram muitas sensações ao mesmo tempo. Fiquei obcecado.
Passei
a vida tentando entender por que aquilo me fazia rir. Passei a
perseguir com unhas e dentes essa coisa estranha que te faz rir sem
você saber por quê.
1970
— Monty Python surge no momento mais louco do século, na cidade
mais louca do mundo. Quantidades industriais de maconha eram
combinadas com doses cavalares de drogas sintéticas e alguns
alucinógenos naturais. No entanto, estranhamente, os Python passaram
ao largo de tudo isso.
Ao
contrário daquele outro grupo de meninos ingleses que mudaram o
mundo, os Python tiveram uma vida acadêmica intensa — e uma vida
social pacata. De um lado, Cleese, Chapman e Idle fizeram
respectivamente direito, medicina e literatura em Cambridge — e se
conheceram nos Footlight, o clube de teatro universitário mais
famoso do país. Do outro, Palin e Jones estudaram história e
literatura em Oxford — encontraram-se no Oxford Revue, o segundo
clube de teatro mais famoso do país. Gilliam, o sexto integrante,
não estudou — “ele é americano”, explica Cleese.
Talvez
porque fossem estudiosos demais, talvez porque a comédia, mesmo a
mais louca, exige certa sobriedade, Eric Idle afirma que nunca
escreveram nenhum esquete sob a influência de droga alguma — a não
ser por Graham Chapman, que bebia industrialmente, mas, em
compensação, quase não escrevia. Acredite se quiser: os Python
passaram os swinging sixties em reuniões de redatores —
escrevendo, escrevendo, escrevendo e vez ou outra discutindo com
furor se uma piada tinha graça. Por incrível que pareça, a
revolução do humor se deu sem ajuda de psicotrópicos — e foi
amplamente televisionada.
O
convite da BBC partiu de Barry Took — um humorista consagrado —
que reuniu os jovens redatores mais talentosos do mercado e deu-lhes
o sonho de qualquer redator: carta branca total. A ideia era romper
com a tradição da TV inglesa — coisa dificílima, porque a TV
inglesa já era muito louca. O humor absurdo, graças a Peter Cook e
Dudley Moore, estava em voga. David Frost e Marty Feldman destilavam
um humor nonsense no horário nobre — com textos dos
próprios Python. Em 1969, Spike Milligan estreia um programa mais
ensandecido do que qualquer episódio do Flying Circus
conseguiria ser — já havia em Milligan o clássico final
metalinguístico usado em abundância pelo grupo nos anos seguintes:
“Esse é o pior esquete em que eu já estive”, “Vamos terminar
esta cena?”, “Vamos”.
Para
revolucionar a loucura que imperava, o ingrediente surpresa dos
Python foi a lucidez. Embora hoje o nome dos Python seja evocado
sempre que se fala em humor nonsense, não acredito que seja essa a
grande contribuição do grupo. Vale lembrar que o Flying Circus
surge quarenta anos depois do movimento surrealista e vinte anos
depois do teatro do absurdo.
Se
te vendem um papagaio morto e você dá em troca uma cacatua manca,
você caiu no nonsense — e perdeu o espectador. O humor dos Python
reside no fato de que um dos personagens sabe que o papagaio está
morto enquanto o outro se recusa a percebê-lo — a tensão entre a
loucura de um e a lucidez do outro prende o espectador na cadeira.
Ele ri de nervoso. A grande novidade explosiva que caracteriza o
pythonesco não é a comédia alucinógena, mas, muito pelo
contrário, a interpretação realista de um universo alucinado.
A
piada nunca é sublinhada pela interpretação. O ator costuma
apontar para uma direção contrária à do texto. Embora John Cleese
seja um mestre do humor físico, enquanto suas pernas chutam o vento
e sua voz alcança 10 mil decibéis, seu rosto permanece impassível.
Seu olhar permanece inalterado. À psicodelia vigente eles
acrescentaram a impassibilidade inglesa (ou, se preferirem, a
fleuma), além de uma crítica social ferina — dessa ninguém
escapa.
O
último filme do grupo, O sentido da vida, dispensou o contato
com a realidade: está mais pra Buñuel que para Monty Python. E,
assim como os filmes de Buñuel, tem momentos geniais — mas não me
provoca gargalhadas. Vale a pena ver — mas não se compara aos
filmes anteriores, Em busca do Cálice Sagrado e A vida de
Brian.
Nos
dois filmes, a trajetória do protagonista mantém um pé no real
enquanto os coadjuvantes mais inusitados surgem para confrontá-lo:
cavaleiros que dizem ni, um Pôncio Pilatos com língua presa. Graham
Chapman, o Python mais louco, interpreta os dois protagonistas com
uma seriedade emocionante. Sua lucidez — a palavra fundamental —
torna hilária a loucura ao seu redor. Vale também lembrar que
muitas vezes o que parece puro delírio é uma crítica corrosiva. A
vida de Brian bate mais forte na Igreja do que qualquer vídeo do
Porta dos Fundos — e gerou reações ainda mais odientas. Salve a
lucidez, mãe da comédia. Salve Monty Python, inventor da lucidez
alucinada.
2014
— Os cinco vão se apresentar em Londres. O motivo da reunião
inédita não é a saudade — é uma dívida de 800 mil libras com
um antigo produtor que processou o grupo, além da pensão de 600 mil
libras que Cleese paga anualmente para sua ex-mulher.
Ninguém
sabe qual vai ser o conteúdo do show. Talvez tenha material novo.
Talvez eles reencenem velhas esquetes. Não importa. Estarei lá.
Todos nós, do Porta dos Fundos, estaremos. O motivo? Também temos
uma dívida a pagar — incalculável.
Gregório Duduvier, in Put some farofa
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