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Alguns
escritores escrevem de maneira tanto meticulosa quanto descuidada, às
vezes na mesma página. Em momentos de preguiça, F. Scott Fitzgerald
podia recorrer a fieiras de clichês, mas no parágrafo seguinte
podia dar a uma palavra familiar aquele novo viés que reinventa
totalmente a linguagem. Essa reinvenção ocorre, a começar com seu
uso da palavra deferentes, na descrição do grande hotel
cor-de-rosa que abre Suave é a noite.
Palmeiras
deferentes refrescam-lhe a enrubescida fachada, e à sua frente
estende-se uma praia curta e deslumbrante... Agora, muitos bangalôs
agrupam-se nas proximidades, mas quando esta história começa só as
cúpulas de uma dúzia de velhas casas de campo apodreciam como
nenúfares em meio aos pinheirais que se estendiam entre Gausses
Hôtel des Étrangers e Cannes, a oito quilômetros de distância.
Cada
adjetivo (enrubescida, deslumbrante) nos impressiona como
adequado. E o símile “apodreciam como nenúfares” virá a
parecer cada vez mais aplicável a muito do que acontece num romance
que é em parte sobre a dissolução e deterioração do amor e da
beleza.
Estudantes
instruídos a revistar O grande Gatsby à procura da
improbidade do narrador, de um retrato histórico de uma era passada
e de uma discussão sobre classe social e o poder do amor perdido
poderiam deixar escapar o esplendor palavra por palavra da primeira
vez que Nick Carraway vê Daisy e sua amiga Jordan. Cada palavra
ajuda a representar um momento particular no tempo, ou fora dele, e a
apreender a convergência de beleza, juventude, confiança, dinheiro
e privilégio. Fitzgerald não apenas descreve, mas nos faz
experimentar a sensação de estar dentro de uma bela sala
junto ao mar.
As
janelas estavam entreabertas e cintilavam, brancas, contra a grama
fresca lá fora, que parecia penetrar um pouco na casa. Uma brisa
percorria a sala, soprava cortinas para dentro numa ponta e para fora
na outra, como pálidas bandeiras, torcendo-as para cima rumo ao bolo
de casamento glaçado do teto, e depois ondulava sobre o tapete cor
de vinho, fazendo uma sombra sobre ele como o vento faz sobre o mar.
O
único objeto completamente estático na sala era um enorme sofá em
que duas jovens flutuavam como se num balão ancorado. Estavam ambas
de branco, e seus vestidos encrespavam-se e adejavam como se tivessem
acabado de ser sopradas de volta após um curto voo pela casa. Devo
ter passado alguns momentos ouvindo o fustigar e o estalar das
cortinas e o gemido de um quadro na parede. Depois houve um estrondo
quando Tom Buchanan fechou as janelas dos fundos e o vento capturado
extinguiu-se na sala, e as cortinas, os tapetes e as duas jovens
pousaram lentamente no assoalho.
Seria
quase possível captar o sentido da passagem separando as palavras de
acordo com a parte da fala que representam, os verbos (cintilavam,
encrespavam-se, pousaram), os adjetivos e as expressões
adjetivadas (as janelas e saias brancas, a grama fresca, as pálidas
bandeiras das cortinas, o bolo de casamento glaçado de um teto), os
substantivos (o fustigar e o estalar das cortinas, o
gemido de um quadro, o vento capturado, o estrondo
da janela fechada). Mas podemos imaginar as mesmas palavras agrupadas
em combinações muito menos felizes. Há pelo menos dois lugares em
que as palavras são usadas, como no caso das palmeiras deferentes,
de maneiras que parecem surpreendentes, até incorretas, mas são
absolutamente adequadas. Não é exatamente uma sombra que o
vento projeta sobre o mar, ou a brisa sobre o tapete, mas sabemos o
que o escritor quer dizer; não há melhor maneira de descrevê-lo.
Nem há uma maneira mais vívida de criar a imagem do que a aparente
improbabilidade das duas mulheres pousando de volta na terra sem
jamais terem saído de seu sofá.
Esse
uso ousado da palavra incorreta ocorre também na primeira frase de
“Os mortos”, de Joyce, em que nos é dito que Lily, a filha do
zelador, está literalmente se virando pelo avesso. Sabemos que não
é literalmente. Trata-se de um erro que a própria Lily
poderia cometer, o que nos põe momentaneamente em seu ponto de vista
e nos prepara para as maneiras como a história jogará com ponto de
vista, com noções de verdade e inverdade, e com os modos como a
classe de origem e a educação afetam o uso que fazemos da
linguagem. Essas palavras “erradas” não são erros nem o produto
da suposição preguiçosa do autor de que uma palavra é tão boa
quanto outra. Também não são a consequência de uma tentativa
insolente de forçar uma palavra quadrada no buraco redondo da frase.
São antes os resultados de deliberações conscientes e cuidadosas
de escritores que pensaram mil vezes antes de empregar
deliberadamente mal uma palavra ou de dar a outra um novo sentido.
Alguns
escritores simplesmente não podem ser compreendidos sem uma leitura
atenta, não só aqueles como Faulkner, que requerem que analisemos
aquelas frases maravilhosamente convolutas, ou como Joyce, que
Picasso chamou de “o incompreensível que todo mundo consegue
compreender”, ou como Thomas Pynchon, que exige que suportemos
longos trechos de narrativa em que podemos não ter absolutamente
nenhuma ideia do que está acontecendo, mesmo no mais simples nível
narrativo. Estou falando sobre estilistas mais enganosamente fáceis
de compreender, que também vêm a ser mestres do subtexto, daquele
lugar entre as linhas onde ocorre parte tão grande da ação.
Francine Prose, in Para ler como um escritor
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