domingo, 27 de agosto de 2023

Palavras

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Alguns escritores escrevem de maneira tanto meticulosa quanto descuidada, às vezes na mesma página. Em momentos de preguiça, F. Scott Fitzgerald podia recorrer a fieiras de clichês, mas no parágrafo seguinte podia dar a uma palavra familiar aquele novo viés que reinventa totalmente a linguagem. Essa reinvenção ocorre, a começar com seu uso da palavra deferentes, na descrição do grande hotel cor-de-rosa que abre Suave é a noite.

Palmeiras deferentes refrescam-lhe a enrubescida fachada, e à sua frente estende-se uma praia curta e deslumbrante... Agora, muitos bangalôs agrupam-se nas proximidades, mas quando esta história começa só as cúpulas de uma dúzia de velhas casas de campo apodreciam como nenúfares em meio aos pinheirais que se estendiam entre Gausses Hôtel des Étrangers e Cannes, a oito quilômetros de distância.

Cada adjetivo (enrubescida, deslumbrante) nos impressiona como adequado. E o símile “apodreciam como nenúfares” virá a parecer cada vez mais aplicável a muito do que acontece num romance que é em parte sobre a dissolução e deterioração do amor e da beleza.
Estudantes instruídos a revistar O grande Gatsby à procura da improbidade do narrador, de um retrato histórico de uma era passada e de uma discussão sobre classe social e o poder do amor perdido poderiam deixar escapar o esplendor palavra por palavra da primeira vez que Nick Carraway vê Daisy e sua amiga Jordan. Cada palavra ajuda a representar um momento particular no tempo, ou fora dele, e a apreender a convergência de beleza, juventude, confiança, dinheiro e privilégio. Fitzgerald não apenas descreve, mas nos faz experimentar a sensação de estar dentro de uma bela sala junto ao mar.

As janelas estavam entreabertas e cintilavam, brancas, contra a grama fresca lá fora, que parecia penetrar um pouco na casa. Uma brisa percorria a sala, soprava cortinas para dentro numa ponta e para fora na outra, como pálidas bandeiras, torcendo-as para cima rumo ao bolo de casamento glaçado do teto, e depois ondulava sobre o tapete cor de vinho, fazendo uma sombra sobre ele como o vento faz sobre o mar.
O único objeto completamente estático na sala era um enorme sofá em que duas jovens flutuavam como se num balão ancorado. Estavam ambas de branco, e seus vestidos encrespavam-se e adejavam como se tivessem acabado de ser sopradas de volta após um curto voo pela casa. Devo ter passado alguns momentos ouvindo o fustigar e o estalar das cortinas e o gemido de um quadro na parede. Depois houve um estrondo quando Tom Buchanan fechou as janelas dos fundos e o vento capturado extinguiu-se na sala, e as cortinas, os tapetes e as duas jovens pousaram lentamente no assoalho.

Seria quase possível captar o sentido da passagem separando as palavras de acordo com a parte da fala que representam, os verbos (cintilavam, encrespavam-se, pousaram), os adjetivos e as expressões adjetivadas (as janelas e saias brancas, a grama fresca, as pálidas bandeiras das cortinas, o bolo de casamento glaçado de um teto), os substantivos (o fustigar e o estalar das cortinas, o gemido de um quadro, o vento capturado, o estrondo da janela fechada). Mas podemos imaginar as mesmas palavras agrupadas em combinações muito menos felizes. Há pelo menos dois lugares em que as palavras são usadas, como no caso das palmeiras deferentes, de maneiras que parecem surpreendentes, até incorretas, mas são absolutamente adequadas. Não é exatamente uma sombra que o vento projeta sobre o mar, ou a brisa sobre o tapete, mas sabemos o que o escritor quer dizer; não há melhor maneira de descrevê-lo. Nem há uma maneira mais vívida de criar a imagem do que a aparente improbabilidade das duas mulheres pousando de volta na terra sem jamais terem saído de seu sofá.
Esse uso ousado da palavra incorreta ocorre também na primeira frase de “Os mortos”, de Joyce, em que nos é dito que Lily, a filha do zelador, está literalmente se virando pelo avesso. Sabemos que não é literalmente. Trata-se de um erro que a própria Lily poderia cometer, o que nos põe momentaneamente em seu ponto de vista e nos prepara para as maneiras como a história jogará com ponto de vista, com noções de verdade e inverdade, e com os modos como a classe de origem e a educação afetam o uso que fazemos da linguagem. Essas palavras “erradas” não são erros nem o produto da suposição preguiçosa do autor de que uma palavra é tão boa quanto outra. Também não são a consequência de uma tentativa insolente de forçar uma palavra quadrada no buraco redondo da frase. São antes os resultados de deliberações conscientes e cuidadosas de escritores que pensaram mil vezes antes de empregar deliberadamente mal uma palavra ou de dar a outra um novo sentido.
Alguns escritores simplesmente não podem ser compreendidos sem uma leitura atenta, não só aqueles como Faulkner, que requerem que analisemos aquelas frases maravilhosamente convolutas, ou como Joyce, que Picasso chamou de “o incompreensível que todo mundo consegue compreender”, ou como Thomas Pynchon, que exige que suportemos longos trechos de narrativa em que podemos não ter absolutamente nenhuma ideia do que está acontecendo, mesmo no mais simples nível narrativo. Estou falando sobre estilistas mais enganosamente fáceis de compreender, que também vêm a ser mestres do subtexto, daquele lugar entre as linhas onde ocorre parte tão grande da ação.

Francine Prose, in Para ler como um escritor 

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