Vejo-a
assomar à porta da alcova, pálida, comovida, trajada de preto, e
ali ficar durante uns dez segundos, sem ânimo de entrar ou detida
pela presença de um homem que estava comigo. Da cama, onde jazia,
contemplei-a durante esse tempo, esquecido de lhe dizer nada ou de
fazer nenhum gesto. Havia já dois anos que nos não víamos, e eu
via-a agora não qual era, mas qual fora, quais fôramos ambos,
porque um Ezequias misterioso fizera recuar o sol até os dias
juvenis.
Recuou
o sol, sacudi todas as misérias, e este punhado de pó, que a morte
ia espalhar na eternidade do nada, pôde mais do que o tempo, que é
o ministro da morte. Nenhuma água de Juventa igualaria ali a simples
saudade.
Creiam-me,
o menos mau é recordar; ninguém se fie da felicidade presente; há
nela uma gota da baba de Caim. Corrido o tempo e cessado o espasmo,
então sim, então talvez se pode gozar deveras, porque entre uma e
outra dessas duas ilusões, melhor é a que se gosta sem doer.
Não
durou muito a evocação; a realidade dominou logo; o presente
expediu o passado. Talvez eu exponha ao leitor, em algum canto deste
livro, a minha teoria das edições humanas.
O
que por agora importa saber é que Virgília – chamava-se Virgília
– entrou na alcova, firme, com a gravidade que lhe davam as roupas
e os anos, e veio até o meu leito. O estranho levantou-se e saiu.
Era um sujeito, que me visitava todos os dias para falar do câmbio,
da colonização e da necessidade de desenvolver a viação férrea;
nada mais interessante para um moribundo. Saiu; Virgília deixou-se
estar de pé; durante algum tempo ficamos a olhar um para o outro,
sem articular palavra. Quem diria? De dois grandes namorados, de duas
paixões sem freio, nada mais havia ali, vinte anos depois; havia
apenas dois corações murchos, devastados pela vida e saciados dela,
não sei se em igual dose, mas enfim saciados.
Virgília
tinha agora a beleza da velhice, um ar austero e maternal; estava
menos magra do que quando a vi, pela última vez, numa festa de São
João, na Tijuca; e porque era das que resistem muito, só agora
começavam os cabelos escuros a intercalar-se de alguns fios de
prata.
– Anda
visitando os defuntos? disse-lhe eu.
– Ora,
defuntos! respondeu Virgília com um muxoxo.
E
depois de me apertar as mãos: – Ando a ver se ponho os vadios para
a rua.
Não
tinha a carícia lacrimosa de outro tempo; mas a voz era amiga e
doce. Sentou-se. Eu estava só, em casa, com um simples enfermeiro;
podíamos falar um ao outro, sem perigo.
Virgília
deu-me longas notícias de fora, narrando-as com graça, com um certo
travo de má língua, que era o sal da palestra; eu, prestes a deixar
o mundo, sentia um prazer satânico em mofar dele, em persuadir-me
que não deixava nada.
– Que
ideias essas! interrompeu-me Virgília um tanto zangada. – Olhe que
eu não volto mais, Morrer! Todos nós havemos de morrer; basta
estarmos vivos.
E
vendo o relógio:
– Jesus!
são três horas. Vou-me embora.
– Já?
– Já;
virei amanhã ou depois.
– Não
sei se faz bem, retorqui; o doente é um solteirão e a casa não tem
senhoras...
– Sua
mana?
– Há
de vir cá passar uns dias, mas não pode ser antes de sábado.
Virgília
refletiu um instante, levantou os ombros e disse com gravidade:
– Estou
velha! Ninguém mais repara em mim. Mas, para cortar dúvidas, virei
com o Nhonhô.
Nhonhô
era um bacharel, único filho de seu casamento, que, na idade de
cinco anos, fora cúmplice inconsciente de nossos amores. Vieram
juntos, dois dias depois, e confesso que, ao vê-los ali, na minha
alcova, fui tomado de um acanhamento que nem me permitiu corresponder
logo às palavras afáveis do rapaz. Virgília adivinhou-me e disse
ao filho;
– Nhonhô,
não repares nesse grande manhoso que aí está; não quer falar para
fazer crer que está à morte.
Sorriu
o filho, eu creio que também sorri, e tudo acabou em pura galhofa,
Virgília estava serena e risonha, tinha o aspecto das vidas
imaculadas. Nenhum olhar suspeito, nenhum gesto que pudesse denunciar
nada; uma igualdade de palavra e de espírito, uma dominação sobre
si mesma, que pareciam e talvez fossem raras. Como tocássemos,
casualmente, nuns amores ilegítimos, meio secretos, meio divulgados,
via-a falar com desdém e um pouco de indignação da mulher de que
se tratava, aliás sua amiga; e o filho sentia-se satisfeito, ouvindo
aquela palavra digna e forte, e eu perguntava a mim mesmo o que
diriam de nós os gaviões, se Buffon tivesse nascido gavião...
Era
o meu delírio que começava.
Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas
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