segunda-feira, 31 de julho de 2023

Os domingos

Os domingos eram dias amaldiçoados. Íamos à igreja presbiteriana, da qual era pastor o mesmo missionário que lutara com o demônio para salvar a alma do Fubina, inutilmente. Era muito chato. Não entendíamos nada. Não acreditávamos em nada. Minha mãe acreditava era na Ave-Maria que a Iaiá lhe havia ensinado e que rezava toda noite antes de dormir. Meu pai, então, era descrente. Acho que nem acreditava em Deus. Ele sempre contava o caso de um católico lá em Boa Esperança que não ia à missa e se entregava a episódios de farra. A pedido da mulher, o padre o repreendia, repreensão que ele aceitava compungidamente, de cabeça baixa. Mas era só o padre virar as costas e lá estava ele com a roda de amigos, na venda. E comentava: “Se Deus ficar com muito enjoamento ele vai acabar sozinho naquele ceuzinho dele...” . Meu pai pensava igual. Então, por que era que ele e minha mãe iam à igreja aos domingos, dia tão bom de se vadiar? Minha mãe contava a história de uma moça que se casou com um homem de quem não gostava só pra se livrar dele. Casando, ele pararia de persegui-la com propostas de casamento. Acho que aconteceu igual com meu pai e minha mãe. Iam à igreja pra se livrar do reverendo Davis. Porque era certo que, se eles não fossem, na manhã da segunda-feira o reverendo apareceria para saber as razões por que não haviam ido à igreja na véspera. Acho que o reverendo Davis, traumatizado com o caso do Fubina, que fora para o inferno por não levantar um dedo, tinha medo que o mesmo acontecesse com meu pai e minha mãe.
Tudo era falso. Lembro-me de ter visto um diácono, secretário da escola dominical que, acreditando-se sozinho, deu um murro no rosto do seu filho, meu colega de escola. Lembro-me da cara de dor que ele fez. E houve um incidente que me marcou, embora eu não o entendesse na época. Aconteceu com uma senhora casada aquilo que acontece com muita gente: ela ficou amando um outro homem. Descuidada e apaixonada, não tomou as devidas precauções. O boato correu. Todo mundo ficou sabendo. Todo mundo comentou. Todo mundo acusou. O marido, homem digno, deixou de ir à igreja com toda a família, por causa da vergonha. Passadas muitas semanas, num culto de quarta-feira, ele apareceu. Assentou-se no último banco. Sozinho. Ninguém o procurou. O marido traído também é culpado. Aí, no meio do culto, o reverendo Davis anunciou solenemente: “Tenho o dever de informar a congregação de que a senhora (o nome dela) foi excluída do rol de membros da nossa igreja por haver transgredido o sétimo mandamento, não adulterarás”. Ouviu-se um soluço no fundo da igreja, soluço que mais parecia um grito — e ele saiu correndo da igreja. Ninguém disse nada. Ninguém fez nada. Todo mundo ficou petrificado. Meu pai ficou furioso. “E se esse homem, da profundeza da sua raiva e humilhação, chegar em casa e fizer uma besteira?” Ninguém percebeu que ela havia transgredido o sétimo mandamento num momento de amor. E o conselho da igreja a havia excluído do rol de membros da igreja por desamor. Quem pecou mais? Assim se comportam os que se julgam puros. Não admira que Jesus os detestasse de forma especial. “As meretrizes entrarão no Reino de Deus antes de vós...”

Rubem Alves, in O velho que acordou menino 

Nenhum comentário:

Postar um comentário