segunda-feira, 29 de maio de 2023

Cenas de Nova York


NESSA ÉPOCA MINHA MÃE morava sozinha em um pequeno apartamento em Jamaica, Long Island, trabalhava em uma fábrica de sapatos, esperando que eu retornasse ao lar para lhe fazer companhia e levá-la ao Radio City uma vez por mês. Mantinha um quarto minúsculo à minha espera, roupa lavada no armário, lençóis limpos na cama. Foi um alívio depois de todos aqueles sacos de dormir, beliches e poeira das estradas de ferro. Foi mais uma das muitas oportunidades que ela me deu durante sua vida para simplesmente ficar em casa e escrever.
Sempre dou a ela tudo o que sobra dos meus pagamentos. Me instalei para longas sonecas sossegadas, para dias inteiros de meditação em casa, para escrever e para extensas caminhadas pela velha e querida Manhattan, a meia hora dali de metrô. Percorri as ruas, as pontes, Times Square, cafés, o cais, visitei todos os meus amigos poetas beatniks e perambulei com eles, tive casos com garotas do Village e fiz tudo isso com aquela imensa e louca alegria que se sente quando se retorna a Nova York.
Tenho escutado grandes cantores negros a chamarem de “A Maçã”!
Ali está agora a vossa cidade insular dos manhattoes, envolta pelo cais”, cantou Herman Melville.
Envolta por marés flamejantes”, recitou Thomas Wolfe.
Vistas completas de Nova York por toda parte, de New Jersey, dos arranha-céus.
ATÉ DE BARES, como um bar da Third Avenue – quatro da tarde, os homens riem ruidosamente, copos retinindo junto com os pés na barra de latão do balcão, excitação do tipo “vamos lá, pessoal” – outubro no ar, no sol do veranico na porta. – Entram dois vendedores da Madison Avenue que passaram o dia inteiro trabalhando, jovens, bem-vestidos, roupas justas, charuto na boca, satisfeitos por terem ganho o dia e pelo drinque que está a caminho, avançam lado a lado sorridentes, mas não há espaço no balcão congestionado e barulhento (Merda!), por isso ficam de pé à espera, rindo e conversando. – Os homens amam os bares, e os bons bares merecem ser amados. – Esse aqui está repleto de homens de negócios, operários, Finn MacCools do Tempo. – Velhos beberrões grisalhos de macacão enxugando cerveja alegres. – Caminhoneiros anônimos com lanternas dependuradas no cinto – velhos bebedores de cerveja alquebrados erguendo tristemente os lábios arroxeados para os píncaros felizes da bebedeira. – Os bartenders são rápidos, solícitos, interessados tanto em seu trabalho como na clientela. – Como em Dublin às 4h30 da tarde, quando o trabalho termina, mas aqui é a fantástica Third Avenue de Nova York, almoço grátis, cheiros da rua triste, rio de dejetos, almoço na estrada suja, portas que se fecham, heróis guitarristas de suíças longas, aroma nos degraus de madeira das soleiras do entardecer sonolento. – Mas são as torres de Nova York se erguendo mais além, vozes se chocam e se confundem falando e mastigando a fofoca até Earwicker abrir o jogo – Ah, Jack Fitzgerald Mighty Murphy, onde anda você? – Trabalhadores braçais semicalvos de camisas azuis remendadas e jeans puídos empunham copos de cerveja de fim de tarde coroados de espuma branca. – O metrô trepida por baixo do bar enquanto o executivo de chapéu e colete mas sem paletó troca o pé esquerdo pelo direito na barra de latão sob o balcão. – Um negro de chapéu, respeitável, jovem, de jornal embaixo do braço, se despede ao balcão, simpático e paternal, se inclinando sobre os outros homens – um ascensorista parado ali no canto. – E não era aqui, segundo contam, que Novak, o corretor de imóveis, costumava ficar de pé até altas horas da noite para se arranjar e enriquecer em sua cela branca de verme noturno datilografando relatórios e cartas, mulher e filhos furiosos em casa às onze da noite – ambicioso, preocupado, em um pequeno escritório da Island, bem ali naquela rua, sem dignidade, mas aberto a qualquer tipo de negócio e na infância qualquer negócio pode ser pequeno e a ambição grande – está agora servindo de adubo para quantas margaridas? e jamais juntou seu milhão, nunca bebeu um copo com So Long Gee Gee e I Love You Too nessa cervejaria do entardecer com homens eufóricos girando nos tamboretes e arrastando os saltos dos sapatos pela barra de latão em Nova York. – Nunca chamou Old Glasses para brindar seu nariz vermelho e batatudo com um trago – jamais sorriu nem permitiu às moscas utilizarem seu nariz como ponto de referência – mas criou uma úlcera no meio da noite para enriquecer e proporcionar o melhor à sua família. – Por isso seu cobertor agora é a melhor porção de terra americana, produzida nos moinhos do saxão com cara de lua de Hudson Bay e trazida até aqui por um pintor de macacão branco (em silêncio) para cercear a jornada de sua outrora una carne, e permitir que os vermes se enterrem nela – Cerca! Vamos lá, mais uma cerveja, seus beberrões – Malditos canequeiros! Amantes!
MEUS AMIGOS E EU temos nossa maneira especial de nos divertirmos em Nova York sem gastar muita grana e principalmente sem sermos importunados por chatos formalistas, como por exemplo uma noitada grã-fina no baile da prefeitura. – Não precisamos apertar mãos, não precisamos marcar encontros e nos sentimos ótimos. – Vagabundeamos sem rumo como crianças. – Entramos nas festas e dizemos a todo mundo o que temos feito, e as pessoas pensam que estamos nos exibindo. – Dizem: “Oh, olhem os beatniks!”.
Vai aqui, como exemplo, uma noite típica: –
Emergindo do metrô da 7th Avenue na 42nd Street, você passa pelo mictório mais arrebentado de Nova York – nunca se sabe se está aberto ou não, geralmente há uma enorme corrente atravessada em frente à porta dizendo que está estragado, ou então tem um monstro decrépito de cabelos brancos se arrastando na entrada, um mictório pelo qual todos os sete milhões de habitantes de Nova York já passaram pelo menos uma vez e repararam em sua estranheza – a seguir você cruza pelo novo quiosque de hambúrgueres na brasa, bancas de bíblias, jukeboxes automáticas e uma mísera banca subterrânea de revistas usadas ao lado de uma tenda de amendoins cheirando a arcadas de metrô – aqui e ali um exemplar usado do velho bardo Plotino metido entre pedaços de coleções de livros didáticos alemães – onde vendem longos cachorros-quentes de aspecto nojento (não, na verdade são bastante atraentes, principalmente se você não tem quinze centavos e procura alguém na Bickford’s Cafeteria que aceite abrir um crédito para você) (que possa emprestar uns trocados).
Depois de subir a escadaria, as pessoas permanecem horas e horas tagarelando na chuva, com os guarda-chuvas encharcados – bandos de garotos de jeans, loucos de medo de entrar no exército, em pé no meio da escada sobre degraus de ferro à espera sabe Deus do que, certamente há entre eles alguns heróis românticos recém-chegados de Oklahoma com ambições de acabar entre suspiros nos braços de alguma jovem loira sexy e imprevisível em uma cobertura do Empire State Building – provavelmente alguns deles estão parados ali sonhando ser donos do Empire State Building por obra e graça de algum passe de mágica com o qual sonharam junto a um regato do interior próximo a uma velha casa caindo aos pedaços nos arredores de Texarkana. – Com vergonha de serem vistos na fila para entrar em um filme de sacanagem (o filme, como se chama?) na calçada em frente ao New York Times – O leão e o tigre passando, como Tom Wolfe costumava dizer a respeito de certos sujeitos cruzando aquela esquina.
Recostado naquela loja de charutos com uma infinidade de cabines telefônicas na esquina da 42nd com a Seventh, onde você dá belos telefonemas observando a rua, e ali dentro parece muito aconchegante enquanto lá fora chove e parece uma boa ideia prolongar a conversação, quem você vê? Equipes de beisebol? Treinadores de basquete? Todos aqueles sujeitos do rinque de patinação vão ali? Caras do Bronx em busca de ação, mas na real a fim de romance? Estranhas duplas de garotas saindo de filmes de sacanagem? Você já as viu alguma vez antes? Ou homens de negócios aturdidos de porre, com chapéus enviesados nas cabeças grisalhas, fitando catatonicamente os letreiros que flutuam no alto do prédio do Times, exibindo frases enormes a respeito de Khrushchev, populações da Ásia enumeradas em lâmpadas que acendem e apagam, sempre quinhentos pontos depois de cada frase. – De súbito surge na esquina um policial psicoticamente preocupado e manda todo mundo circular. – Esse é o centro da maior cidade que o mundo jamais conheceu, e isso é o que os beatniks fazem aqui. – “Ficar parado na esquina esperando ninguém é Poder”, profetizou o poeta Gregory Corso.
Em vez de ir a boates – se você está na posição de quem pode frequentar boates (a maioria dos beatniks chacoalha bolsos vazios quando passa pelo Birdland) – como é estranho parar na calçada e apenas observar aquele esquisitão excêntrico da Second Avenue que parece Napoleão ao passar, esmigalhando os pedaços de pão em seu bolso, ou um garoto de quinze anos e cara atrevida, ou alguém que de repente passa zunindo com um boné de beisebol (porque é isso que você vê) e finalmente uma senhora com sete chapéus e um longo casaco de peles esfarrapado em plena noite de verão carregando uma enorme bolsa de lã russa cheia de pedacinhos de papel amassado onde se lê “Festival Foundation Inc., 70 mil Germes” e traças saindo de suas mangas – ela aborda e perturba os shriners. E soldados sem guerra com sacos de lona – tocadores de harmônica saídos de trens de carga. – Claro que há nova-iorquinos normais, que parecem ridiculamente deslocados e tão esquisitos quanto sua própria esquisitice elegante, carregando pizzas e jornais diários e a caminho de porões escuros ou trens da Pensilvânia – o próprio W. H. Auden pode ser visto todo atrapalhado sob a chuva – Paul Bowles, alinhado em um terno de poliéster, retornando de uma viagem ao Marrocos, o fantasma do próprio Herman Melville seguido por Bartleby, o autor de Wall Street, e Pierre, o hipster ambíguo de 1848 dando um passeio – para ver o que há de novo nos flashes noticiosos do Times. – Voltemos à banca de jornais da esquina. – EXPLOSÃO ESPACIAL... O PAPA LAVA OS PÉS DOS POBRES...
Vamos cruzar a rua até o Grant’s, nosso restaurante predileto. Por 65 centavos você descola uma enorme porção de mexilhões fritos, um monte de batatas fritas, uma pequena porção de salada de repolho, um pouco de molho tártaro, uma tacinha de molho vermelho para peixe, uma rodela de limão, duas fatias de pão de centeio e um pedacinho de manteiga, e por mais dez centavos um copo de uma excelente cerveja de raiz de vidoeiro. – Que festim comer aqui! Bandos de espanhóis em pé engolindo cachorros-quentes encostados nos enormes potes de mostarda. – Dez balcões diferentes com diferentes especialidades. – Sanduíches de queijo por dez centavos, dois bares para o Apocalipse, oh sim, e ótimos garçons indiferentes. – E tiras comendo de graça lá nos fundos – saxofonistas bêbados cochilando – respeitáveis punguistas solitários esfarrapados da Hudson Street sorvendo sua sopa sem trocar uma palavra com ninguém, os dedos negros, uau. – Vinte mil clientes por dia – cinquenta mil nos dias de chuva – cem mil quando neva. – Aberto vinte e quatro horas por noite. Intimidade – absoluta, sob uma forte luz vermelha repleta de conversações. – Toulouse-Lautrec, com sua deformidade e sua bengala, rabiscando em um canto. – Você pode ficar ali por cinco minutos e devorar sua comida ou então permanecer horas mantendo uma conversa filosófica insana com seu companheiro e se surpreendendo com as pessoas. – “Vamos comer um cachorro-quente antes de ir ao cinema!”, e aí você fica tão doido lá dentro que não vai a cinema nenhum porque aquilo ali é muito melhor do que um filme de Doris Day em férias no Caribe.
Mas o que faremos esta noite? Marty queria ir ao cinema, mas vamos descolar alguma coisa para fazer a cabeça. – Vamos até o Automat.”
Espera um pouco, preciso engraxar os sapatos em cima de algum hidrante.”
Você não quer dar uma espiada no espelho deformante?”
Está a fim de tirar quatro fotos por 25 centavos? Afinal, estamos na cena eterna. Poderemos olhar as fotos e recordar disso tudo quando formos velhos e sábios Thoreaus de cabelos grisalhos em cabanas.”
Ah, já não há mais espelhos deformantes por aqui, antigamente tinha espelhos deformantes aqui.”
Que tal o cinema Laff?”
Também já era.”
Tem o circo de pulgas.”
E ainda tem coristas?”
O burlesco já acabou há milhões e milhões de anos.”
Vamos até o Automat ver aquelas velhotas comendo feijões, ou os surdos-mudos parados diante da janela enquanto você os observa e tenta decifrar a linguagem invisível à medida que ela voa pela janela, de face para face e de dedo para dedo...? Por que a Times Square parece uma imensa sala?”
Do outro lado da rua fica o Bickford’s, bem no meio do quarteirão, sob a marquise do Apollo Theater e ao lado de uma livraria minúscula especializada em Havelock Ellis e Rabelais com milhares de maníacos sexuais remexendo nos caixotes. – O Bickford’s é o maior palco da Times Square – muita gente tem perambulado por ali há anos, homens e meninos em busca sabe Deus de que, talvez de algum anjo da Times Square que transforme aquela grande sala em um lar, o velho lar doce lar – a civilização precisa disso. – Aliás, o que a Times Square está fazendo ali? O melhor mesmo é aproveitá-la. – A maior cidade que o mundo jamais viu. – Será que há uma Times Square em Marte? O que a Bolha Assassina faria em Times Square? Ou San Francisco?
Uma garota desce de um ônibus no Port Authority Terminal e entra no Bickford’s, garota chinesa, sapatos vermelhos, senta para beber um chá, à espera do papai.
Há toda uma população flutuante em torno da Times Square que, dia e noite, faz sempre do Bickford’s seu quartel-general. Nos velhos tempos da geração beat, alguns poetas costumavam ir até ali para encontrar o famoso personagem “Hunkey”, que aparecia de vez em quando, com uma capa de chuva preta grande demais e uma cigarreira, à procura de alguém para vender uma cautela de objetos penhorados – máquina de escrever Remington, rádio portátil, capa de chuva preta – para descolar um trago, (conseguir uma grana) para poder ir para a parte alta da cidade arrumar confusão com os tiras ou com alguns de seus rapazes. Alguns gangsters imbecis da 8th Avenue também costumavam dar as caras por lá – talvez ainda o façam – os dos velhos tempos estão na cadeia ou no cemitério. Agora os poetas vão lá apenas para fumar um cachimbo da paz, à procura do fantasma de Hunkey ou de seus rapazes, e para sonhar diante de desbotadas xícaras de chá.
Os beatniks garantem que, se você fosse lá todas as noites e lá permanecesse, poderia iniciar por si mesmo uma temporada completa de Dostoiévski bem ali na Times Square, conhecer todos os colunistas fofoqueiros dos jornais da madrugada e seus casos, famílias e infortúnios – fanáticos religiosos que levariam você para casa e fariam longos sermões na mesa da cozinha sobre o “novo apocalipse” e ideias assemelhadas: “Meu ministro batista de Winston-Salem disse que Deus inventou a televisão para que, quando Cristo retornar à terra, eles O crucifiquem nas ruas dessa Babilônia daqui, e as câmeras de TV estejam apontadas para a cena, e então o sangue escorrerá pelas ruas, e todos os olhos hão de ver”.
Se continuar com fome, vá até a Cafeteria Oriental – também um “restaurante favorito” – um pouco de vida noturna – barato – no subterrâneo bem em frente do monolítico terminal de ônibus de Port Authority na 40 th Street, e coma enormes cabeças de carneiro gordurosas com arroz grego por noventa centavos. – Exóticas melodias orientais ondulantes na jukebox.
Dependendo do quão chapado você esteja agora – presumindo que tenha descolado algum lance em uma das esquinas – digamos na 42th Street com 8th Avenue, perto da imensa drogaria Whelan, outro antro solitário onde se pode encontrar algumas pessoas – prostitutas negras, damas de andar vacilante em psicose de benzedrina. – Do outro lado da rua se pode ver as já iniciadas ruínas de Nova York – o Globe Hotel sendo posto abaixo, um buraco como o de um dente caído em plena 44th Street – e o edifício verde da McGraw-Hill arranhando o céu, mais alto do que se possa imaginar – solitário, apontando em direção ao rio Hudson, onde os cargueiros esperam sob a chuva sua pedra calcária vinda de Montevidéu.
O melhor é ir para casa, está ficando tarde. – Ou: “Vamos ao Village ou ao Lower East Side ouvir Symphony Sid no rádio – ou tocar nossos discos indígenas – e comer enormes bifes porto-riquenhos mortos – ou guisado de mondongo – ver se Bruno andou cortando mais capotas de automóveis no Brooklyn – embora Bruno ande mais calmo agora, talvez tenha escrito um novo poema”.
Ou ver televisão. Vida noturna – Oscar Levant falando da sua melancolia no programa de Jack Paar.
O Five Spot, na 5th Street com a Bowery, às vezes apresenta Thelonious Monk no piano e a rapaziada aparece por lá. Quem conhece o dono pode se sentar de graça em uma mesa com uma cerveja, quem não conhece pode entrar sorrateiramente e ficar próximo ao ventilador, escutando. Nos fins de semana está sempre lotado. Monk medita em abstração mortífera, clonk, faz uma declaração, o pé enorme batendo delicadamente no chão, cabeça virada para o lado, escutando, e então entra o piano.
Lester Young tocou lá pouco antes de morrer e entre um número e outro se sentava na cozinha, nos fundos. Meu amigo poeta Allen Ginsberg foi lá, se ajoelhou e perguntou o que ele faria caso uma bomba atômica caísse em Nova York. Lester respondeu que pelo menos quebraria a vitrine da Tiffany’s e apanharia algumas joias. Também disse: “O que você está fazendo ajoelhado?”, sem perceber que era um dos grandes heróis da geração beat, hoje consagrado. O Five Spot é mal-iluminado, tem garçons estranhos e boa música sempre, às vezes John “Train” Coltrane inunda a casa inteira com as notas ásperas de seu grande sax tenor. Nos fins de semana, grupos de gente elegante da parte alta da cidade lotam a casa e conversam sem parar – ninguém liga.
Oh, quem sabe umas duas horas no Egyptian Gardens do Lower West Side, em Chelsea, a zona dos restaurantes gregos. – Copos de ouzo, bebida grega e lindas garotas dançando a dança do ventre com sutiãs bordados com lantejoulas, a incomparável Zara ondulando na pista como um mistério ao ritmo das flautas e ao tilintar das notas gregas – quando não está dançando, Zara se senta na orquestra com olhos sonhadores, os homens batucando um tambor contra o ventre dela. – Vastas multidões do que parecem ser casais de subúrbio se sentam às mesas e acompanham com palmas o flutuante ritmo oriental. – Quem chega atrasado tem que ficar encostado à parede.
Quer dançar? Garden Bar, na 3rd Avenue, onde se pode praticar fantásticas danças bem agitadas na pequena saleta dos fundos ao som de uma jukebox, barato, o garçom nem liga.
Quer conversar apenas? Cedar Bar, na University Place, onde aparecem todos os pintores e onde um garoto de dezesseis anos passou uma tarde esguichando vinho tinto de um odre espanhol para dentro da boca dos amigos, errando sempre...
Os clubes noturnos do Greenwich Village conhecidos por Half Note, Village Vanguard, Café Bohemia e Village Gate também apresentam jazz (Lee Konitz, J. J. Johnson, Miles Davis), mas é preciso ter muita grana e não é só isso, é que a triste atmosfera comercial está matando o jazz, e o jazz está matando a si mesmo ali, porque o jazz pertence às cervejarias baratas, alegres e abertas a todos, como no início.
Há uma grande festa no loft de um pintor qualquer, um louco som flamengo na vitrola em alto volume, de repente as garotas se tornam todas quadris e calcanhares, e as pessoas tentam dançar entre seus cabelos esvoaçantes. – Homens perdem a cabeça e começam a se agarrar às pessoas, voam objetos pelos ares, uns sujeitos agarram outros pelos joelhos e os erguem a dois metros e meio do chão, se desequilibram, mas ninguém se machuca, blonk. – Garotas se equilibram com as mãos apoiadas nos joelhos dos homens, as saias delas caem, revelando rendinhas em suas coxas. – Por fim todo mundo se veste para voltar para casa, e o anfitrião observa, aturdido: “Vocês parecem todos tão respeitáveis!”.
Ou alguém fez um lançamento, ou há leitura de poemas no Living Theater, ou no Gaslight Café, ou na Seven Arts Coffee Gallery, nas imediações da Times Square (9th Avenue e 43rd Street, lugar extraordinário) (nas sextas-feiras começa à meia-noite), depois dali todo mundo corre de volta para o velho bar do agito. – Ou então uma festança na casa de Leroi Jones – ele tem um novo exemplar da Yugen Magazine impresso por ele mesmo em uma máquina caindo aos pedaços, e lá estão os poemas de toda a rapaziada, de San Francisco a Gloucester, Massachussetts, e custa apenas cinquenta centavos. – Editor histórico, hipster secreto da matéria. – Leroi está começando a ficar farto de festas, todos sempre arrancam a camisa, começam a dançar, três garotas sentimentais se grudam ao poeta Raymond Bremser, meu camarada Gregory Corso discute com um jornalista do Post de Nova York e diz: “Mas você não compreende o pranto Canguriano! Abandone sua profissão! Vá se refugiar nas ilhas Enchenedianas!”.
Vamos cair fora daqui, é literário demais. – Vamos nos embebedar na Bowery ou comer aquele macarrão comprido com copos de chá no Hong Pat’s em Chinatown. – Por que estamos sempre comendo? Vamos dar uma caminhada pela ponte do Brooklyn e abrir o apetite outra vez. – Que tal um pouco de quiabo na Sands Street?
Oh, fantasma de Hart Crane!
VAMOS VER se encontramos Don Joseph!”
Quem é Don Joseph?”
Don Joseph é um fantástico trompetista que perambula pelo Village, de bigodinho e braços caídos segurando o trompete, que se estala quando ele toca mansamente, ou melhor murmura, o melhor e mais suave dos trompetes desde Bix e mais. – Ele fica parado junto à jukebox do bar e acompanha a música em troca de cerveja. – Parece um galã de cinema. – É o incrível, secreto superglamourouso Bobby Hackett do mundo do jazz.
E tem aquele sujeito, Tony Fruscella, que senta de pernas cruzadas no tapete, toca Bach de ouvido no trompete, e mais tarde da noite toca com os rapazes em uma sessão de jazz moderno –
Ou George Jones, o oculto da Bowery, que toca um tenor maravilhoso nos parques ao nascer do dia com Charley Mariano, só de curtição, porque amam o jazz, e uma vez no cais, ao nascer do sol, tocaram uma sessão inteira enquanto um sujeito batia com um pedaço de pau na doca para marcar o ritmo.
Falando dos malucos da Bowery, que me dizem de Charley Mills, que percorre a rua com vadios que bebem suas garrafas de vinho cantando em uma escala de doze tons?
Vamos ver os incríveis e estranhos pintores secretos da América e discutir com eles seus quadros e suas visões – Iris Brodie com sua delicada filigrana bizantina de virgens –”
Ou Miles Frost e seu touro negro na caverna alaranjada.”
Ou Franz Klein e suas teias de aranha.”
Suas malditas teias de aranha!”
Ou Willem de Kooning e seu Branco.”
Ou Robert De Niro.”
Ou Dody Muller e sua Anunciação em flores de 2,1 metros de altura.”
Ou Al Leslie e suas telas com cavaletes gigantescos.”
O gigante de Al Leslie está ressonando no edifício da Paramount.”
Há um outro grande pintor chamado Bill Heine, é um pintor clandestino realmente secreto, que senta no meio de todos aqueles caras loucos dos cafés da East Tenth Street, que não se parecem em nada com cafés, mas sim com uma espécie de empório de roupas usadas dos porões da Henry Street, com a diferença de que sobre o umbral da porta se vê uma escultura africana ou talvez uma escultura de Mary Frank e lá dentro rodam Frescobaldi na vitrola.
AH, VAMOS VOLTAR PARA O VILLAGE e parar na esquina da Eighth Street com Sixth Avenue para ver os intelectuais passarem. – Repórteres da AP correndo para seus apartamentos de subsolo na Washington Square, colunistas femininas com grandes cães policiais quase rebentando a corrente, detetives solitários passando como sombras, desconhecidos peritos em Sherlock Holmes com unhas azuis a caminho de seus quartos para tomarem escopolamina, um jovem musculoso de terno alemão cinzento barato explicando algo grotesco para sua namorada gorda, grandes redatores educadamente recostados às bancas de jornal a postos para comprarem a primeira edição do Times, enormes empregados gordos de mudanças saídos de filmes de 1910 de Charlie Chaplin retornando para casa com imensos sacos transbordando de chop-suey (alimentam todo mundo), o melancólico arlequim de Picasso que agora é dono de uma loja de gravuras e molduras pensando na mulher e no filho recém-nascido e levantando um dedo para chamar um táxi, engenheiros de som balofos apressados com seus gorros de pele, gatas artistas da Columbia com seus problemas à D. H. Lawrence caçando homens de cinquenta anos, velhos no Kettle of Fish, e o espectro melancólico da prisão feminina de Nova York que se ergue no horizonte envolta em silêncio como a própria noite – ao pôr do sol suas janelas parecem laranjas – o poeta e. e. cummings comprando um pacote de pastilhas para garganta à sombra daquela monstruosidade. – Se está chovendo, você pode ficar debaixo do toldo do Howard Johnson’s e observar o outro lado da rua.
O beatnik Angel Peter Orlovsky no supermercado cinco portas adiante, comprando biscoitos Uneeda (tarde da noite, sexta-feira), sorvete, caviar, bacon, pretzels, refrigerantes, TV Guide, vaselina, três escovas de dentes, leite maltado (sonhando com leitão assado recheado), comprando batatas de Idaho, pão de passas de uva, couve com lagartas por engano e tomates frescos e recolhendo selos vermelhos. – Depois vai para casa falido, joga tudo em cima da mesa, pega um enorme livro de poemas de Mayakovsky, liga o televisor de 1949 em um filme de terror e vai dormir.
E essa é a vida beat na noite de Nova York.

Jack Kerouack, in Cenas de Nova York e outras viagens

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