quarta-feira, 29 de março de 2023

Naufrágios | Capítulo 3





Isaku acomodou a carga de galhos secos nos ombros e começou a descer a trilha. O mar estava ficando mais agitado sob o céu brilhante e avermelhado. As ondas já vinham com espuma desde lá de longe, e arrebentavam com força contra a praia e o cabo. A entrada do inverno era geralmente marcada por quatro dias de mar bravio seguidos por dois de calmaria; nos últimos três dias a agitação do mar havia impedido a pescaria. Havia pedras expostas ao longo de toda a trilha, e Isaku lutava para não tropeçar e cair sob o peso da carga.
Os telhados das casas apareceram à vista. A mãe de Isaku encontrava-se junto à porta dos fundos, acenando para ele se apressar. Ela parecia ter algo urgente a dizer. Apoiando-se em uma vara que usava para manter o equilíbrio, ele aproximou-se da casa.
Chegou uma mensagem dizendo que o chefe da aldeia quer ver você. Vá para lá imediatamente — disse a mãe, afobada.
Apesar de Isaku já ter visto o chefe da aldeia, nunca tinha falado com ele e por isso não podia imaginar por que estava sendo chamado.
Vá logo! — disse a mãe, tirando a carga dos ombros dele, algo que jamais havia feito antes, e dando-lhe um forte tapa na parte de trás da cabeça para apressá-lo. Isaku cambaleou adiante pela trilha. A tonalidade vermelha no céu estava desaparecendo, e o mar começava a ficar escuro. A costa encontrava-se toda molhada por causa do borrifo das ondas.
Ele correu pela trilha e subiu os degraus de pedra. Um velho que trabalhava para a família do chefe da aldeia recolhia grãos que tinham sido espalhados em uma esteira de palha.

Isaku entrou na casa e se abaixou, curvando-se em reverência. O chefe da aldeia encontrava-se sentado diante do fogo. Isaku disse quem era com a voz hesitante, os joelhos tremendo com a certeza de que seria admoestado por alguma ofensa que cometera sem saber.
A começar por hoje, você vai trabalhar nos caldeirões de sal. Vai ser sua primeira noite, por isso você irá com Kichizo e pedirá que ele lhe ensine tudo. Depois, será por sua conta. Não deixe o fogo apagar.
O chefe da aldeia tinha uma voz fina e aguda como a de uma criança. Isaku fez outra reverência, tocando o chão com a testa.
Pode ir.
Ainda ajoelhado, Isaku recuou de costas pela entrada, levantou-se e partiu.
Seu rosto ficou avermelhado com a excitação, enquanto a tensão se esvaía. A ordem de trabalhar toda a noite no caldeirão de sal significava que ele era reconhecido como um adulto. Sabia que isso iria acontecer desde que permitiram que ajudasse na cremação, mas ter a confirmação o enchia de uma alegria irreprimível. Ele correu pela trilha da costa até sua casa. A essa altura o céu já tinha ficado escuro.
Isaku deixou a casa carregando uma tocha acesa. Quando a mãe ficou sabendo que recebera a ordem de cuidar das fogueiras sob os caldeirões, ela ficou animada, o que era muito incomum, e preparou feijão para ele comer durante a noite. A chama da tocha ondulava ao vento. Ele deixou a trilha e seguiu para a praia. Podia ver o brilho do fogo adiante na praia e sentiu que havia alguém ali.
Isaku se apressou. O olho são do homem encontrava-se fixo em Isaku. O outro era branco e opaco, tendo perdido o brilho havia muito. Isaku considerou-se felizardo por ter Kichizo, que era um bom amigo de seu pai, para iniciá-lo.
Pedras de bom tamanho haviam sido arranjadas em dois pontos da área arenosa da praia para servir como base para os dois grandes caldeirões. Sob um deles, a lenha já queimava.
Acenda o outro também — disse Kichizo, olhando para a segunda panela imensa a cerca de dez metros de distância.
Isaku respondeu de forma exagerada, pegando uma braçada de galhos secos de sob uma esteira de palha, girando para colocá-los nas costas, e foi até o segundo caldeirão. Colocou os galhos na área protegida pelas pedras e os acendeu o fogo com um graveto em brasa tirado da primeira fogueira. Os galhos estalaram ao pegar fogo. Isaku jogou mais lenha no fogo.
As chamas erguiam-se sob os dois caldeirões, tremeluzindo ao vento do mar e lançando fagulhas na areia. Isaku olhou para as chamas enquanto estava ali sentado perto de Kichizo em um tronco colocado dentro de uma cabana de madeira.
Vários anos antes, Kichizo tivera uma doença no olho que o deixara incapacitado para pescar, forçando-o a vender a esposa em servidão por três anos. Ela retornara à vila depois de terminar o contrato no porto no extremo sul da ilha, mas só voltara seis meses depois de seu contrato ter acabado, e Kichizo desconfiara que ela tivesse ficado com outro homem, durante esse tempo.
Se era verdade ou não, ninguém sabia, mas havia rumores entre os habitantes da aldeia de que ela tinha tido um bebê e por isso prolongara o contrato.
Kichizo havia batido nela com violência, e em um acesso de fúria chegara ao extremo de cortar os cabelos dela. Em ocasiões como essa, quando a mulher fora correndo para a casa de Isaku, o pai e mãe dele intervieram. Kichizo parara de bater na mulher apenas quando o chefe da aldeia interferira e o admoestara severamente. Depois disso ele se tornara um homem taciturno, de poucas palavras. Costumava ir sempre à noite visitar a casa de Isaku, às vezes levando vinho feito de milho. Ele se sentava lá em silêncio, assentindo enquanto ouvia as histórias de pescador do pai de Isaku.
Você sabe por que fazemos o sal na praia, não sabe? — disse Kichizo, o olho são fixo em Isaku.
O suprimento anual de sal seria produzido e então distribuído de acordo com o número de pessoas de cada família. Mas Isaku percebeu que havia algum outro motivo para a pergunta de Kichizo.
É para chamar O-fune-sama, não é? — disse ele, olhando diretamente para Kichizo. Kichizo não disse nada, desviando o olho para os caldeirões. Por sua expressão, Isaku sentiu que sua resposta não fora satisfatória.
Isaku imaginara que a ordem do chefe da aldeia significava que ele tivesse de aprender tudo sobre cuidar dos caldeirões de sal. Ainda não compreendia muita coisa sobre os rituais da vila, mas agora que era um adulto não podia mais se permitir continuar sendo ignorante. Depois daquela noite ele teria de cuidar sozinho do fogo sob os caldeirões, portanto precisava fazer com que Kichizo lhe contasse tudo.
Serve como oferenda para que O-fune-sama venha para a costa?
Não é só uma oferenda. Serve para atrair barcos que passem ao longo da costa — disse Kichizo, impaciente.
Para atrair barcos?
Isso mesmo. Quando o vento noroeste começa a soprar, o mar fica bravo e mais barcos têm problemas. À noite quando as ondas começam a passar sobre os tombadilhos, eles chegam a jogar carga no mar para diminuir o peso. Em momentos como esse, os tripulantes avistam a luz dos caldeirões e pensam que são casas na costa. Então viram o barco na direção da costa.
O olho são de Kichizo brilhou como se ele estivesse estudando Isaku, que olhou para Kichizo antes de se voltar para o mar. Ele podia perceber a linha onde o céu estrelado encontrava a água escura. Havia um recife vasto e intrincado oculto sob a superfície da água. Quando saíam para pescar, os homens da aldeia contornavam as pedras com seus barcos, mas um navio grande entrando naquelas águas inevitavelmente teria o casco rasgado.
Isaku refletiu que estava finalmente começando a compreender. Tinha deduzido que os caldeirões de sal fossem parte de um ritual realizado com a esperança de que os barcos se acidentassem, mas agora percebia que eles também serviam para atrair os barcos para os recifes.
Se o único objetivo fosse a produção do sal, então fazê-lo durante o dia seria muito mais conveniente; mas agora ele compreendia por que aquilo era feito sempre à noite. Além disso, ficou claro para ele por que as fogueiras não eram acesas em noites calmas; os barcos não teriam problemas navegando no mar calmo.
O fogo está apagando — disse Kichizo, levantando-se.
Isaku se levantou e seguiu Kichizo, pegando um punhado de lenha de sob a esteira de palha. Foi até o caldeirão da direita e jogou a lenha sob ele.
Diziam que marinheiros em má situação durante uma tempestade noturna eram capazes de fazer qualquer coisa para sobreviver. Eles jogavam a carga no mar, cortavam seus cabelos e rezavam para os deuses pedindo proteção, e se o barco parecesse mesmo estar a ponto de virar, eles até cortavam o mastro para mantê-lo estável. Para eles, as fogueiras sob os caldeirões na praia poderiam muito bem parecer luzes de casas na costa. Não havia dúvida de que eles pensariam que suas preces tinham sido atendidas e virariam o navio na direção das luzes.
A madeira foi envolvida pelas chamas.
Quando Isaku retornou para a pequena cabana, Kichizo sentou-se no tronco e empilhou galhinhos secos na areia. Ele os acendeu e colocou mais lenha por cima. Isaku aqueceu as mãos ao fogo. O vento de súbito ficou mais frio.
Estes fogos vão trazer O-fune-sama, não vão? — perguntou Isaku com um brilho nos olhos ao fitar Kichizo.
Kichizo assentiu.
Não aconteceu nos últimos anos, mas quando eles vêm, vêm sempre um depois do outro. Quando comecei a sair para pescar com seu pai, eles vieram quatro anos seguidos. Quando eu tinha onze anos, tivemos três em um só inverno. Tudo por causa destes fogos. Naqueles dias ninguém precisava ser vendido como servo — disse ele em voz baixa.
Isaku imaginou que Kichizo estivesse falando tanto assim porque se sentia à vontade com o filho do amigo. Apesar de ter perdido a visão de um olho, se O-fune-sama tivesse vindo, ele não teria sido forçado a vender a esposa como serva e o casamento deles não teria sido arruinado.
Isaku olhou para o mar. Pensou em Tami, a terceira filha de Senkichi. A filha mais velha já tinha sido vendida, e agora havia rumores de que a segunda filha seguiria o mesmo caminho para a servidão. Se não houvesse uma dádiva do mar nos próximos anos, sem dúvida aconteceria o mesmo com Tami.
Isaku ficou agitado. Se um barco tivesse sido atraído para os recifes, seu pai também não teria sido forçado a se vender. A vida dos habitantes da aldeia dependiam da vinda de O-fune-sama.
Fazemos sal desse modo para garantir que os fogos não se apaguem e para fazer O-fune-sama vir. — O olho de Kichizo refletia o brilho vermelho das chamas do fogo.
Fico imaginando se virá algum neste inverno — disse Isaku, olhando para o mar.
Quem sabe... Quando o vento começa a soprar do noroeste, eles ficam assustados e os navios não saem do porto. Mas mesmo assim, quando têm carga para levar, eles esperam um dia mais calmo para partir. A maioria dos barcos carrega arroz — murmurou Kichizo.
A sonolência tomou conta de Isaku quando se aqueceu ao fogo. Seu corpo estava entorpecido, e as pálpebras começavam a ficar pesadas. Se ele adormecesse, sem dúvida seria dispensado da tarefa de cuidar do fogo do sal, e sua mãe ficaria furiosa e bateria nele. Só de pensar em tal desgraça ficava aterrorizado.
Isaku se levantou e correu para fora da cabana. Um vento frio soprava do mar. Ele ergueu-se na ponta dos pés e olhou dentro do caldeirão. Nuvens de vapor erguiam-se enquanto a água salgada evaporava. Ele verificou o fogo, então pegou vários pedaços de lenha e os jogou sob os caldeirões. No instante seguinte não sentia mais sono.

Akira Yoshimura, in Naufrágios

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