sexta-feira, 31 de março de 2023

Cartas para minha avó

O fantasma de sexualização esteve presente em minha vida a maior parte do tempo, me fazendo ser um tanto solitária. Eu ia às atividades do centro espírita — algumas consistiam em visitar orfanatos e asilos —, saía com a minha mãe ou simplesmente ficava em casa. Intuitivamente, eu tinha uma proteção “antimacho” que me afastou de viver péssimas experiências — ou pelo menos evitou muitas. A ilusão de um amor me completava de alguma maneira. Ninguém que eu conhecia na vida real superava o amor imaginário que viria me buscar em casa pra jantar e andaria de mãos dadas comigo, acariciando meus cabelos antes de me beijar com carinho. Claro que essa ilusão também me prejudicou, eu precisava aprender a lidar com a realidade, mas a realidade que se apresentava consistia em forçação de barra e mãos não requisitadas.
Não é que eu estivesse fixada na fantasia. Acho que teria me entregado facilmente a uma experiência amorosa real, com suas contradições, mas era a realidade que insistia em não me olhar com olhos de amor. Eu queria ser vista com delicadeza, encontrar alguém com quem falar dos meus livros favoritos, da história triste do velhinho do asilo. Claro que eu também desejava contato físico, mas não exclusivamente.
Aos dezenove anos, para esquecer o meu primeiro amor que não surgia, eu saía sozinha. Claro, eu poderia ir ao pagode com minha irmã e as amigas dela, mas não gostava, então preferia ficar nos bares de mpb. As primeiras vezes foram legais, eu bebia suco e curtia as músicas. Mas precisei parar de ir. Primeiro porque ainda não tinha a confiança de sentar sozinha em uma mesa de bar, e não conseguia bancar os comentários sobre mim. Segundo, porque alguns homens começaram a enviar bebidas para a minha mesa, talvez julgando que eu era uma prostituta à procura de clientes, e não uma jovem sonhadora querendo se inebriar de canções de amor. Isso se repete até hoje, são muitas as vezes que evito sair sem companhia ou me abstenho de tomar um drink no hotel.
Nas vezes em que fui sozinha a barzinhos, eu voltava andando pelo calçadão da praia, observando todas as pessoas que pareciam viver numa realidade paralela à minha. Mais do que felizes, elas pareciam encaixadas à vida. Em geral, eu buscava todas as possibilidades para não sentir a vida, simplesmente não me reconhecia como parte integrante dela. Minhas amigas loiras estavam sempre com seus namorados e, por mais que se decepcionassem também, sempre tinham alguém para apresentar aos pais e de quem pegar emprestado o moletom em um dia frio. Eu olhava os casais apaixonados nos banquinhos da praia e aquilo parecia um sonho distante. Eu via as famílias parecendo felizes andando pelos jardins, pessoas pedalando suas bicicletas, mães correndo atrás de seus filhos esboçando sorrisos. Havia casais namorando, pais e mães conversando com seus filhos, a lua refletindo o mar. Eu não me reconhecia em nenhuma daquelas pessoas.
Eu queria viver um amor, vó, mas não queria que fosse qualquer amor. Não ficava chateada se não beijasse ninguém numa festa, mas sim se não beijasse o garoto que eu julgava ser legal. E eu nunca beijei o garoto legal, sempre voltava pra casa pensando como teria sido. Uma sensação de vazio me tomava.
Nas poucas vezes que fui a bailes de Carnaval na adolescência ou quando jovem adulta, os rapazes tentavam me beijar à força, tudo era muito naturalizado. E foram várias as vezes em que ouvi, ao rejeitá-los: “Está se achando, hein, neguinha? Você não é tudo isso”. Para eles, eu deveria me sentir honrada em ser beijada à força ou agradecer por eles passarem a mão em mim sem meu consentimento.

Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó

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