terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Cartas para minha avó

Eu realmente não estava sabendo lidar com tanta dor. Se não fosse pelos meus amigos, teria sucumbido. Sobretudo o Hamilton, um amigo da adolescência que cedeu a casa durante boa parte do tempo em que cuidei do meu pai no hospital. Não fossem as jantas gostosas que a mãe dele fazia, aquele feijão que lembrava o seu, tudo teria sido mais difícil. A cama que ele preparava pra eu descansar, as centenas de vezes em que assistimos Moulin Rouge e brigávamos porque ele cometia o pecado de dizer que Céline Dion era melhor do que Whitney Houston. Fui abraçada por aquela família como você me abraçava. Não fosse pelas noites naquela casa, na altura do centésimo degrau da escadaria do Monte Serrat, a vida teria sido mais amarga.
Assim que me acalmei, saí da sala e fui para o quarto onde meu pai estava. Abri o Evangelho Segundo o Espiritismo e fiz a oração para a pessoa que está partindo. Sabia que ele se arrependia de muita coisa, escolhas erradas, traições e abandonos. Sabia que ele ficava triste por, nos últimos anos, ter se afastado da família. Mas sabia também que, naquele momento, tudo estava resolvido.
Conversei com ele, falei o quanto o amava e o quanto era grata por ter tido ele como pai. Dei um beijo em sua testa e decidi ir embora. Eu sabia que ele partiria naquele dia e eu não queria estar lá. Na verdade, ele já estava mais inconsciente do que consciente, mas eu não queria ver. Um ano antes eu havia acompanhado o corpo da minha mãe e eu não tinha estrutura para viver a mesma coisa com meu pai.
Ele ficou com a namorada e alguns amigos no quarto. Cantei uma música do Milton Nascimento bem baixinho, o artista que ele me ensinou a amar, e saí do quarto.
Meu pai ficaria atônito se soubesse que me tornei amiga do Milton, vó, certeza de que ele se gabaria para todas as visitas. Sim, eu me tornei amiga dele e sinto que conhecer o artista que cresci ouvindo com meu pai é um modo de sempre mantê-lo vivo.
Naquela noite, quando o telefone tocou em casa, eu já sabia. Fui inundada por uma sensação de paz por saber que o sofrimento dele havia acabado. “Para quem quer se soltar, invento um cais, invento mais do que a solidão me dá. Invento o amor e sei a dor de me lançar.”

Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó

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