quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Noite fria

Leslie andava sob as palmeiras. Parou diante de um cocô de cachorro. Eram dez e quinze da noite em Hollywood leste. O mercado subira 22 pontos naquele dia e os especialistas não sabiam explicar o motivo. Eram muito melhores para explicar quando o mercado caía. A catástrofe deixava-os felizes. Fazia frio em Hollywood leste. Leslie abotoou o botão de cima do casaco e teve um arrepio. Curvou os ombros contra o frio.
Um homenzinho de chapéu de feltro cinza aproximou-se dele. O rosto parecia a frente de uma melancia, sem expressão. Leslie pegou um cigarro e atravessou o caminho do homenzinho. O outro tinha seus quarenta e cinco anos, um metro e sessenta e poucos, uns setenta quilos talvez.
Tem fósforo, senhor? – ele perguntou ao homem.
Ah, sim...
O homem enfiou a mão no bolso, e enquanto fazia isso Leslie meteu-lhe o joelho nas virilhas. O homem rosnou e curvou-se, e Leslie deu-lhe uma porrada atrás de uma das orelhas. Quando o homem caiu, Leslie ajoelhou-se, sacou a faca e cortou-lhe a garganta, ao frio luar de Hollywood leste.
Foi tudo muito estranho. Foi como um sonho meio lembrado. Leslie não sabia ao certo se aquilo estava acontecendo de fato ou não. A princípio, o sangue pareceu hesitar, era apenas um corte profundo, depois o sangue esguichou. Leslie recuou enojado. Levantou-se, afastou-se. Depois voltou, meteu a mão no bolso do homem, encontrou os fósforos, levantou-se, acendeu o cigarro e afastou-se rua abaixo, em direção a seu apartamento. Leslie nunca tinha fósforos suficientes, a gente sempre vivia sem fósforos, ao que parecia. Fósforos e esferográficas...
Leslie sentou-se com um uísque com água. O rádio tocava Copeland. Bem, Copeland não era grande coisa, mas era melhor que Sinatra. A gente pegava o que conseguia e tentava satisfazer-se. Era o que seu velho lhe dizia. Foda-se seu velho. Fodam-se todos os meninos de Jesus. Foda-se Billy Graham.
Ouviu uma batida na porta. Era Sonny, o garoto louro que morava defronte dele, no lado oposto do pátio. Sonny era meio homem e meio pau, e vivia confuso. A maioria dos caras de pau grande tinha problemas quando acabava a trepada. Mas Sonny era mais legal que a maioria; era suave, era delicado e tinha um pouco de inteligência. Às vezes era até engraçado.
Escuta, Leslie, quero falar com você uns minutos.
Tudo bem. Mas, merda, estou cansado. Passei o dia todo nas corridas.
Mal, hum?
Quando voltei ao estacionamento, depois que acabou, descobri que um filho da puta tinha arrancado meu para-choque ao sair. Isso é uma merda, você sabe.
Como se saiu com os cavalinhos?
Ganhei duzentos e oitenta dólares. Mas estou cansado.
Tudo bem, não vou demorar muito.
Tudo bem. Que é que há? Sua velha? Por que não dá umas porradas pra valer em sua velha? Os dois vão se sentir melhor.
Não, minha velha está bem. Só que... merda, eu não sei. Essas coisas, você sabe. Parece que não consigo entrar em nada. Parece que não me ligo. Tudo travado. Todas as cartas tomadas.
Porra, isso é o normal. A vida é um jogo unilateral. Mas você só tem vinte e sete anos, talvez dê sorte em alguma coisa, de algum modo.
Que fazia você quando tinha minha idade?
Estava pior que você. Ficava deitado no escuro à noite, bêbado, na rua, esperando que alguém me atropelasse. Não dei sorte.
Não conseguia pensar em outra saída?
Isso é uma das coisas mais difíceis, imaginar qual deve ser a primeira jogada da gente.
É... Tudo parece tão inútil.
Nós matamos o filho de Deus. Acha que aquele Sacana vai nos perdoar? Eu posso ser louco, mas sei que Ele não vai!
Você só fica sentado aí, com seu roupão rasgado, e passa metade do tempo bêbado, mas eu sei que é mais são do que qualquer um que eu conheço.
Opa, gosto disso. Você conhece muita gente?
Sonny apenas deu de ombros.
O que eu preciso saber é se há uma saída. Há alguma espécie de saída?
Garoto, não há saída. Os analistas aconselham a gente a jogar xadrez ou colecionar selos ou jogar bilhar. Qualquer coisa, menos pensar nos problemas maiores.
Xadrez é um saco.
Tudo é um saco. Não há como escapar. Sabe que alguns vagabundos de antigamente tatuavam no braço: “NASCIDO PRA MORRER.” Por mais primitivo que pareça isso, é sabedoria fundamental.
Que acha que os vagabundos tatuariam no braço hoje?
Não sei. Na certa alguma coisa tipo “JESUS BARBEIA”.[2]
Não podemos fugir de Deus, podemos?
Talvez Ele não possa fugir de nós.
Bem, escuta, é sempre bom conversar com você. Sempre me sinto melhor depois de conversar com você.
Quando quiser, garoto.
Sonny levantou-se, abriu a porta, fechou-a e se foi. Leslie serviu outro uísque com água. Bem, os Rams de Los Angeles tinham formado sua linha de defesa. Uma boa jogada. Tudo na vida evoluía para a DEFESA. A Cortina de Ferro, a mente de ferro, a vida de ferro. Um treinador realmente durão ia acabar mandando chutar no ar toda vez que sua equipe pegasse a bola, e jamais perderia o jogo.
Leslie acabou o seu uísque, baixou as calças e coçou o rabo, enterrando os dedos. As pessoas que curavam suas hemorroidas eram idiotas. Quando não havia ninguém mais em volta, era melhor do que ficar sozinho. Leslie serviu-se outro uísque. O telefone tocou.
Alô?
Era Francine. Francine gostava de impressioná-lo. Gostava de achar que o impressionava. Mas era uma chata elefantina. Leslie muitas vezes pensava em como era bom deixando que ela o chateasse daquele jeito. O cara médio bateria o telefone na cara dela como uma guilhotina.
Quem escrevera aquele excelente ensaio sobre a guilhotina? Camus? Era, Camus. Camus tinha sido um chato, também. Mas o ensaio sobre a guilhotina e O Estrangeiro eram sensacionais.
Almocei hoje no Beverly Hills Hotel – ela disse. – Tive uma mesa só pra mim. Salada e drinques. Dustin Hoffman estava lá, e algumas outras estrelas de cinema também. Conversei com as pessoas sentadas perto e elas sorriram e balançaram a cabeça, mesas inteiras de sorrisos e acenos de cabeça, carinhas amarelas como narcisos. Continuei falando e eles sorrindo. Achavam que eu era alguma doida, e o jeito de se livrarem era sorrindo. Foram ficando cada vez mais nervosos. Você entende?
Claro.
Achei que você gostaria de saber disso.
É...
Está sozinho? Quer companhia?
Esta noite estou realmente cansado, Francine.
Após algum tempo Francine desligou. Leslie despiu-se, tornou a coçar o rabo e entrou no banheiro. Correu o fio dental entre os poucos dentes que lhe restavam. Que feiúra, aquelas coisas penduradas. Devia espatifar os dentes restantes com um martelo. Todas as brigas de beco que tivera e ninguém pegara os dentes da frente. Bem, tudo acabaria ficando bem. Acabado. Leslie pôs Crest na escova elétrica e tentou ganhar algum tempo.
Depois disso, sentou-se na cama por um longo tempo, com um último uísque e um cigarro. Pelo menos era alguma coisa a fazer enquanto se esperava para ver no que daria. Ele olhou a caixa de fósforos em sua mão, e de repente lembrou-se que era a que tirara do homem da cara de melancia. O pensamento espantou-o. Aquilo tinha acontecido de fato ou não? Ele fitava a caixa de fósforos, imaginando. Olhou a tampa:
1.000 RÓTULOS PERSONALIZADOS
COM SEU NOME E ENDEREÇO
APENAS 1 DÓLAR
Bem, pensou, isso não parece um mau negócio.

[2] “JESUS SHAVES” – Trocadilho com saves (salva), de “Jesus Saves”, com shaves (barbeia). (N. T.)

Charles Bukowski, in Numa Fria

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