terça-feira, 29 de novembro de 2022

Cartas para minha avó

Enquanto escrevia essas cartas para você, meu irmão Denis, o mais velho, me enviou uma foto sua, vó. Você estava toda altiva, usando roupas brancas e com um turbante na cabeça. Fiquei observando cada detalhe da imagem, me demorei imaginando quais histórias havia por trás das rugas em seu rosto, quantas vidas tinham sido afetadas por aquelas mãos calejadas que curavam cobreiros e davam esperança aos que foram benzidos. Mas nada me chamou mais atenção do que seus olhos. Um olhar penetrante, forte e, de novo, altivo. Minha mãe carregava o mesmo olhar, apesar de ele ter sido encurvado pelo tempo. Às vezes ela falava só com olhares, e eu aprendi a decifrar cada um deles: “Saia daqui”, “Fique quieta”, “Não se meta, é conversa de adulto”, “Quando seu pai for trabalhar, você vai se ver comigo”.
Um olhar, porém, me é inesquecível. Um olhar que só mulheres cúmplices podem trocar: “Confirme com seu pai que a compra custou tanto”, “Veja se seu pai desligou o chuveiro para que eu tenha tempo de checar a carteira dele”. O resultado desse olhar significaria compras a mais no supermercado, roupas novas fora do Natal, guloseimas no domingo. “Se seu pai vai gastar dinheiro na rua, que a gente tire o nosso”, minha mãe dizia.
Essa cumplicidade, porém, tinha um sentido mais profundo: o de me proteger das violências que somente mulheres sofrem. Esse olhar poderia ser feio para quem mexesse com a gente na rua, de fúria para vizinhos que dissessem lascivamente “suas filhas estão crescendo”, de amor e afeto quando ela me dizia para dormir com ela na sua cama. Se as injustiças do mundo me deixam indignada, foi porque olhos altivos negros da cor da noite me acolheram antes que eu pudesse aprender as palavras, antes que eu soubesse o que era feminismo ou luta política. Olhos que me repreenderam quando eu estava errada e que me ensinaram a humildade de pedir desculpas.
Por mais que você e minha mãe se desentendessem constantemente, seus olhares eram quase iguais. Penso que somente a geração futura poderá fazer justiça às mais velhas ou compreender outros olhares. Como se diz no candomblé, os mais novos precisam dos mais velhos, reconhecer o caminho pavimentado, mas os mais velhos também precisam dos mais novos, para seguirem existindo e terem senso de continuidade. A força dos olhares cúmplices seus e de minha mãe, mesmo que menos frequentes do que desejávamos, foi fundamental para me ensinar a ver o mundo pela perspectiva da mulher que enfrenta visceralmente o mundo. Ao ver seus olhos na foto, entendi de onde herdei os meus.

Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó

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