terça-feira, 27 de setembro de 2022

Capítulo 333

CARTA ABERTA AO TIMES

Embora de pijama, vejo-me obrigado a representar a W. Exas. contra o abuso inominável de que vimos sendo vítimas, eu e outras pessoas igualmente respeitáveis, num campo de concentração dentre os muitos que devem existir por este mundo concentrado de hoje, e que não sei dizer se fica na Europa ou na Ásia ou mesmo na Polinésia, pois justamente este é o segredo maior que paira sobre as nossas cabeças, enquanto ainda as temos. Aqui todos falam todas as línguas, cada um a sua naturalmente, o que pode parecer estranhável é que nem sempre é o inglês quem fala o inglês, o francês quem fala o francês, o russo quem fala o russo, e assim por diante, sendo ao contrário comum que um embaixador da Abissínia, por exemplo, nunca tenha ouvido falar do abissínio em toda a sua vida, ou que um legado do Papa não saiba sequer dizer amen em latim, ou ainda que um descendente de Napoleão Bonaparte só conheça em francês os nomes das boates mais famosas, como Folies Bergère ou Mandarin e outras semelhantes. Eu mesmo, que sou iraniano, ou que pelo menos me sinto iraniano esta manhã, não sei dizer ao certo nem onde fica situado o Ira no mundo conturbado de hoje, embora já tenha viajado muito no passado, sobretudo em imaginação.
Mas o assunto desta, que coloco numa garrafa e jogo no cano de esgoto para que possa chegar até às mãos de W. Exas., não é geográfico nem linguístico, e sim estritamente moral e humano, como o foi o Sermão da Montanha por exemplo, para só citar um exemplo famoso. Trata-se apenas de despertar a consciência de VV. Exas. para o fato de, em pleno século XX, e ao que consta em pleno período de paz, ser permitido a um pequeno grupo de idiotas manter presos e por vezes mesmo amarrados alguns cidadãos de alta linhagem e de reputação acima de qualquer suspeita — só porque esses cidadãos, entre os quais estou eu naturalmente, não pactuam e não poderiam mesmo pactuar com suas ideias retrógradas e obsoletas, seja em matéria de religião como de política, de amor como de finanças ou de arte. Pois o que ocorre neste campo de concentração onde me encontro, como deve acontecer em todos os demais, é apenas isto e que me parece de um absurdo inominável: uma minoria armada até os dentes, inclusive com cadeiras elétricas, manda e desmanda sobre uma maioria de indivíduos realmente individuais e tenta impor-lhes à força a sua cartilha de primeiras letras, quando não o seu catecismo religioso dos tempos antediluvianos, que é a quanto chegam no melhor dos casos as ideias ou que outro nome tenha a intolerância desses senhores da terra e dos céus.
A comida aqui não é má, mesmo porque já faz parte do programa desses maníacos a preocupação de manterem quanto possível vivos os seus escravos brancos ou negros, amarelos ou vermelhos — sem o que teriam, por desfastio, que devorar-se entre si e declarar-se guerra quase que diariamente, o que não lhes seria de muito proveito. Mas se a comida não é intragável, a liberdade aqui é uma palavra que já não existe nem sequer nos dicionários e de que só ouvimos falar quando somos nós que a pronunciamos, em geral em voz baixa e para nós mesmos. E sem liberdade, hão de convir W. Exas. que este mundo, por melhor que seja, não passa de um pesadelo e de uma farsa de mau gosto — como há de achar no front o soldado com o seu fuzil e suas polainas, num dia azul de primavera.
Não temos sequer a liberdade de amar — já não digo uns aos outros, o que seria demais, mas a uma mulher de nossa predileção, ou mesmo a uma simples mulher pois as únicas mulheres que vemos ou são estrábicas ou não têm quaisquer atributos que as diferenciem dos homens donos do campo, tratando-nos ou como crianças ou como idiotas, no que aliás copiam um pouco as verdadeiras mulheres. E não havendo mulheres propriamente ditas, o cérebro emperra e os nervos sobem à flor da pele, dando azo a esse espetáculo triste e grotesco da masturbação coletiva, mesmo nos feriados e dias-santos. A única mulher que tem algo feminino, dentre as poucas que circulam pelas salas da nossa prisão, é a mulher do inquisidor-mor ou, se W. Exas. preferem, do chefe da guarda ou administrador do estabelecimento — mas essa mesmo tem um estrabismo bem pronunciado e é menos acessível do que a lua no céu ou o seu reflexo no fundo de um poço, dada a vigilância a que estamos continuamente submetidos. Há casos profundamente dolorosos, como o do Dr. Keither por exemplo, que se vê obrigado a masturbar-se como um menino de colégio só porque os nossos carrascos decidiram que não somos homens até o dia em que finalmente resolvamos voltar ao aprisco das ideias feitas e ao cadinho de seus sentimentos desumanizados e postiços. Eu, neste particular, vivo à custa de minhas boas recordações de todos os bordéis e salões de luxo que frequentei dos vinte aos trinta e cinco anos, na Europa, na Ásia, na Oceania, na América, na África, e sobretudo em sonho. Não que eu fuja à regra geral da masturbação; mas posso afirmar que sinto muito menos os aguilhões da carne do que, por exemplo, o legado pontifício ou seu casmurro secretário, para não falar de um estudante chamado Vinícius e que vive a recitar a Bíblia justamente naqueles trechos em que a Bíblia desperta a imaginação da juventude e favorece, de certo modo, as poluções noturnas.
Mas tudo isso é muito trágico, eu bem sei, e o pijama não é o traje apropriado para considerações de tal transcendência, mesmo num mundo em que o absurdo é cada vez mais a regra geral, ou tende a sê-lo pelo menos. Em outra oportunidade (caso me arranjem uma outra garrafa) voltarei ainda ao mesmo assunto, que pode parecer monótono a W. Exas. mas que para nós é vital e direi mesmo único, já que a morte do espírito é mil vezes mais trágica do que a morte do corpo, e que o homem privado da sua liberdade de pensar e de amar vale menos do que a sua sombra num muro — a menos que se trate naturalmente de um muro junto ao qual ele esteja sendo fuzilado, com os olhos bem abertos e a cabeça erguida.
Respeitosas saudações.

Walter Campos de Carvalho, in A lua vem da Ásia

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