sexta-feira, 29 de abril de 2022

Síndrome da fuga repentina


A praia Preta fica a menos de três horas de casa. Mas, como é Ano-Novo, a praia Preta pode ficar a mais de dez horas de casa. A praia Preta pode ficar a “não dá pra chegar em casa” de casa dependendo do dia e da hora que eu decida voltar. A praia Preta pode ficar a “quem teve essa ideia de merda?” dependendo da hora que eu decida ir. A praia Preta, tranquila, não badalada, não conhecida, dentro de um condomínio de casas familiares com labradores e bebês, no Litoral Norte de São Paulo, pode ficar a “sério que você vai pra Marte de triciclo trajando apenas sua carne viva?” de casa.
Se eu fosse realmente explicar (como se explicar não alimentasse ainda mais um ciclo que é apenas ansiedade e que piora quando alimentado), diria que pode acontecer muita chateação. Por exemplo, semana passada. A reunião era para durar “uma horinha”, mas durou duas. O percurso de Higienópolis até em casa era para durar vinte minutos, mas havia muito trânsito e durou mais de quarenta. Tudo isso atrasou muito um xixi programado desde a metade da reunião, e também impediu que eu tirasse logo uma calça que estava me apertando muito. A soma de “segurar xixi” com “calça apertada” com “suar de muito calor” com “nervoso de não conseguir chegar logo em casa para fazer xixi e tirar logo a calça apertada e molhada de suor” me deu candidíase. A candidíase me deu dor lombar e enjoo. Fiquei um dia inteiro meio pra baixo, querendo deitar, os olhos ardendo. Cândida dá uma deprimida. A sensação de que somos mais abertas do que gostaríamos. Agora me diz se eu não estivesse em casa, pertinho da minha chaleira, da minha cama, do Onofre em Casa, do meu ginecologista, do banheiro.
Por exemplo, semana retrasada. Eu comi o melhor polvo de todos os tempos. E, porque era o melhor polvo de todos os tempos, comi muito. Onze da noite, tive uma daquelas dores de barriga que dão calafrios e arrepios e você teria tempo de ler Grande sertão: veredas no banheiro caso tivesse alguma condição de ler algo em vez de ficar se contorcendo. Se abraçando como se dissesse o tempo todo para si mesmo: “eu estou aqui com você”. Agora me diz se eu não estivesse em casa, pertinho da minha chaleira, da minha cama, do Onofre em Casa, do meu gastroenterologista, do banheiro.
Por exemplo, mês passado. Eu briguei feio com uma das minhas melhores amigas. Um pouco porque ela mereceu, mas muito porque a verdade é que tenho um pouco de mania de perseguição. A verdade é que tenho muita mania de perseguição. E criei na cabeça uma história de que ela não estava sendo legal. Bastava eu dizer que estava triste, mas eu disse outras cinquenta e seis coisas que para mim queriam dizer: “estou triste” e para ela queriam dizer: “vou te foder, sua vaca” e para nós, depois, acabaram querendo dizer que sou maluca. E a gente brigou feio. E eu fiquei com muita gastrite e um pouco de labirintite e ninguém vem me dizer que não foi o fígado, porque fígado pode até não doer mas é quem dá tontura e é quem mais sofre quando a gente está sofrendo. Aquilo que parece a boca do estômago, ninguém me tira da cabeça que é fígado. Isso, meu pai me ensinou. Agora me diz se eu não estivesse em casa, pertinho da minha chaleira, da minha cama, do Onofre em Casa, da minha analista, do banheiro.
Se eu fosse realmente explicar, diria que hoje mesmo eu tive uma daquelas enxaquecas insuportáveis que começam com dor no pescoço que começa com uma tensão típica dos dias em que terei enxaqueca. Fiquei muito enjoada e deitei no escuro com a cabeça para fora da cama, para alongar o pescoço. O que piorou a enxaqueca, porque acho que mandar mais sangue para um lugar que já me parecia inchado não foi bom negócio. Agora me diz se eu não estivesse em casa, pertinho. Você já entendeu. Essas coisas dão uma segurança, é isso que eu quero dizer.
Pode parecer papo de velha, e claro que a coisa piora com a idade. Mas eu já pensava essas coisas aos quinze anos. Eu sempre pensei essas coisas, desde que comecei a pensar coisas. Aos vinte viajei com um namorado para Ilhabela e ele estava realmente preocupado se no dia seguinte “ventaria mais ao norte”, ou algo parecido, para ele praticar kitesurf. “Olha bem pra minha cara”, eu queria dizer a ele. Eu estava preocupada se meus pais morreriam antes do Natal, mesmo ainda sendo eles muito jovens e saudáveis (e sendo ainda jovens e saudáveis até hoje). Estava preocupada se acordaria às quatro da manhã com um ataque intenso de pânico que inviabilizaria estar naquela pousada, namorar, tomar café, ter amigos, trabalhar, ser promovida, ser promovida de novo, ter um parto normal, ter mais um filho, ir passar o Natal na casa dos pais de um marido “x”, andar pelas ruas, fazer compras num supermercado, envelhecer na companhia de alguém, ter alguém próximo a mim no dia da minha morte, não sentir dor ao morrer, ter alguém que eu amasse muito e com quem pudesse ficar muito à vontade para gemer de dor e talvez estar meio suja e talvez precisar de ajuda para ir ao banheiro no dia que eu bem velhinha tivesse que morrer.
E ele preocupado com o vento de Ilhabela. Ele era bem bonito, mas realmente fiquei me perguntando de que me servia tudo aquilo. A pousada, o fato de ele ser bonito, a praia. A festa que haveria no dia seguinte, com todos aqueles “jovens” amigos dele, “você vai adorar”. Daí eu perguntava o que eles faziam da vida e ele não entendia por que eu perguntava isso. E daí se uma das meninas não trabalha, se um dos caras trabalha com o pai numa empresa em que o próprio pai não trabalha e muito menos o filho que trabalha com o pai? E daí que eram apenas jovens querendo curtir? Eu a noite inteira tentando ter um pouco de conversa de verdade com algum daqueles “jovens”. Queria perguntar a uma das meninas bêbadas amigas dele: “e você tem mais angústia em que hora do dia?”. Eu desistindo deles, talvez meio enjoada, trancada no banheiro, deitada no geladinho com as pernas em cima do bidê, algo como “parece o fim dos tempos, mas sou só eu querendo que a minha pressão volte”. Ele estava preocupado com o vento e me dizia o quanto eu ia adorar seus amigos.
Já está tudo combinado para o Ano-Novo na praia Preta. Cada um dos nove amigos paga quatro mil duzentos e quarenta reais. Nesse valor estão inclusos aluguel de uma casa enorme de frente para a praia, limpeza feita pelo caseiro por seis dias, almoço e jantar feitos pela mulher do caseiro por seis dias, e muitas bebidas alcoólicas que certamente vão acabar antes. Pensei em pedir um desconto porque não bebo. Mas ninguém gosta de dificuldade na hora de dividir uma conta. Nem eu. Prefiro pagar a mais a ficar com uma calculadora atrás dos outros. Mas, quando a bebida acabar no quarto dia e todo mundo for dar mais dinheiro, espero que tenham a decência de não me pedir. Porque não bebo. E talvez esse pensamento nem seja necessário, porque muito provavelmente no quarto dia já não estarei na casa.
O quarto dia é dia 30 de dezembro. Imagina o vazio da estrada nesse dia. Ninguém volta da praia um dia antes da virada do ano. Ninguém volta da praia um dia antes de fazer o que foi fazer na praia. É por isso mesmo, porque ninguém vai travar minha passagem, que estou pensando em voltar no dia 30. Vão achar estranho, eu sei. O cara que estou levando comigo “numas de namorado mas ainda estamos nos conhecendo” talvez fique meio enojadinho, talvez apenas me ache misteriosa. Os outros vão balançar a cabeça enquanto estou ali e “falar de mim” depois que eu me for. Vão comentar: “que puta doida, podia estar aqui agora com a gente” quando estiverem bêbados pulando ondinhas e se achando mais que felizes e mais que espertos. Mas tudo isso é melhor que seis dias ininterruptos pensando: “e se eu quiser ir embora agora, vão travar minha passagem?”. Talvez eu aguente esse pensamento por dois dias, talvez por nenhum. Nem por um único dia. Eu nem gosto de Ano-Novo. Eu tenho, na verdade, pavor de Ano-Novo. Eu nem realmente gosto das pessoas que vão nessa viagem. Eu nem gosto desse namorado. Então talvez, e, agora sim, esta é uma decisão muito verdadeira e séria, eu nem vá. Não vou, acho.
Apesar do valor alto, estou tranquila em desmarcar a viagem e pagar mesmo assim. Ou em ficar apenas quatro, dos seis dias, e pagar a quantia inteira, mesmo assim. Ou em ir num dia, voltar no outro, e pagar os quatro mil duzentos e quarenta reais, mesmo assim. Se bem que é uma sacanagem comigo, pagar por algo que talvez eu não faça. Mas é uma sacanagem com os outros desistir em cima da hora. Talvez eu vá de manhã e no fim da tarde já queira voltar. Porque eu posso voltar. É importante que eu saiba disso, que fique muito claro, que fique claro para todo mundo. É importante que eu chegue por último, para o meu carro ficar mais perto da saída. É importante que não travem meu carro, caso eu queira ir embora de madrugada (não quero incomodar, acordar os outros). Vou porque quero e volto quando quero. Mesmo que seja meio doente voltar duas horas depois de chegar. Ainda assim posso voltar. E é bem capaz que eu volte. Talvez não duas horas depois, porque nem é muito seguro, preciso descansar. Mas posso dormir um pouco e voltar. Talvez eu simplesmente vá embora, deixe um bilhete, escolha a pessoa de quem gosto ao menos um pouco e avise: “minha mãe tá mal”. Não é exatamente uma mentira, nunca é, minha mãe e meu pai nunca estiveram exatamente bem em todas essas décadas. Quem é que está de fato cem por cento bem qualquer que seja o dia e a idade e a década? Então não é exatamente mentira.
Vou fazer a mala para seis dias, apenas para o caso de “e se”. Mas já meio que negociei, só comigo, claro, que ficarei metade disso. Ou um terço. E tenho essa opção maravilhosa, muito cristalina, muito real, muito ensolarada, muito possível, de, quando chegar o dia, não ir. Ou de, no meio da estrada, indo, voltar. Mas farei a mala, comprarei protetor solar, calcinha branca, uma canga enorme para me refestelar na areia. Legumes, frutas e ovos orgânicos (porque sei que vão ignorar meu pedido de “somente comida orgânica”, então vou me garantir). Aliás, como farei isso sem que achem que estou segregando minha comida? Não sei. Está vendo? Coisa demais para pensar, coisa demais para lidar. Seis intermináveis anos em Marte, em carne viva, correndo o risco de travarem meu carro, travarem a estrada, travarem minha saída com frases como “fica aí, doida”. Como se faz para ir a qualquer lugar sem achar isso gigantescamente insuportável? Sem ficar cansada antes mesmo de ir?
Vou com meu carro, mas, para o caso de “dar uma merda com o carro ou dar uma merda com a minha capacidade de dirigir ou dar uma merda com o namoradinho de quem eu nem gosto e ele precisar ficar com meu carro”, descubro pelo Google um único ponto de táxi na praia Preta e ligo para o Jerônimo. Jerônimo diz que está de férias. “É férias, moça. É Ano-Novo.” Eu digo que é uma emergência e que posso pagar quinhentos reais, pergunto se ele pode me indicar alguém. Ele rapidamente indica a si mesmo.
Explico que vou para a praia Preta no dia 27 de manhã, mas a qualquer momento posso precisar voltar. Minto que minha mãe está internada num hospital, fazendo exames, e que, a depender da gravidade do resultado deles, vou precisar voltar com urgência. Mas vou precisar voltar na hora exata em que precisar voltar. Pode ser, inclusive, de madrugada. Pode ser durante o almoço. Eu preciso ligar e saber que, quinze minutos depois do segundo em que eu ligar, ele estará na porta da casa. Ele topa. Diz que tem pai doente e entende. Me dá o número do celular dele. Antes de sair, mando uma mensagem para confirmar que nossos celulares estão sabidos e salvos e são aqueles mesmo. Vejo a foto dele, parece boa gente. Ele responde um “vai com Deus”. Faço terapia há mais de dez anos, mas só consigo ir para a praia Preta por causa do Jerônimo. Preencho um cheque com o valor de quinhentos reais só para o caso de “estar ansiosa demais pra preencher um cheque”, e vou. Só por causa do cheque consigo ir.
Na estrada penso que meu pai não vai para a praia, vai passar o Ano-Novo sozinho com seu cachorro. Outro cachorro, porque o primeiro morreu. Na estrada penso que minha mãe não vai para a praia, vai passar o Ano-Novo sozinha com sua cachorra. Outra cachorra, porque a primeira morreu. A primeira cachorra morreu e fico triste. Penso na minha analista dizendo: “você precisa ter a sua vida”. Com quem será que minha analista vai passar o Ano-Novo? O Ano-Novo joga uma bomba na cidade e todas as formigas correm para fora de suas vidas e isso é triste e assustador. Meus pais estão envelhecendo e isso é triste e assustador. Eles não gostam muito de festa, mas ao mesmo tempo gostam e preferem ficar sozinhos, mas ao mesmo tempo não preferem e isso é triste e assustador. Eu ainda não tive filhos e seria bonito passar o Ano-Novo com um filho. E talvez meus pais ficassem mais felizes com um neto. Mas agora o que tenho são amigos na praia e isso é triste e assustador. Uma coisa boa e feliz e verão e festa ser tão triste e assustadora me deixa muito triste e assustada. Estou cada vez mais longe de casa, mas, ao chegar lá, ainda será perto. Vou conseguir. Dia 1o, não. Melhor dia 2. Dia 2 está aí. E as pessoas voltam e vão retirar a bomba do meio da cidade. E meus pais estarão sozinhos, cada um numa casa, com seus cachorros, passando a noite do dia 2, sozinhos, com seus cachorros. Mas aí tudo bem, porque não tem fogos. São os fogos, acho, que deixam tudo com cara de “festejo solene e obrigatório”. Os fogos, quando não estamos comemorando, são como tiros de canhão no peito, lembrando como somos sozinhos e tristes e assustados. São como estouros de tímpanos porque nossa solidão e tristeza e susto não suportam os sons tão altos dos outros em solenes festejos obrigatórios. Lembrando que cachorros morrem e famílias se desfazem e pessoas, por causa da bomba que foi jogada no meio da cidade, fogem como formigas. Mas dia 2, qualquer coisa, eu estou por perto. Na verdade, antes, bem antes. Talvez eu volte agora. Acho que não vou.

Tati Bernardi, in Depois a louca sou eu

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