quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

O som do rugido da onça | XVI

É fato que reis constroem castelos, além de pontes. O castelo está para o rei como os afogados estão para os rios. Entretanto, os rios não necessitam de afogados em suas torrentes para que tenha sentido sua existência; os afogados lhes são indiferentes, é a verdade, ao contrário dos reis, que, sem castelo, parecem ter diminuída sua potência. Assim, quanto mais castelos e pontes e mesmo conventos em pilares sólidos e alicerces estruturados, tanto maior o poder do rei, tenha ele qual nome tiver. Ah, e as guerras, é claro! E a ciência, que coloca as guerras em movimento, com suas sempre novas tecnologias de matar. O poder de um rei, embora dito natural, não é fluido; necessita de mecanismos, arruelas e encaixes. Nada é simples.
O castelo, embora possa ser lar e fortificação, casa e posto de combate, universo que se ergue para fora da caixa de mogno talhada com adornos de marfim da rainha, ou, o contrário, ajuntamento de pedra e carne que penetra em dobras e quinas no interior aveludado e rubro da mesma caixa, é, também e sobretudo, a marca da ruína. O castelo de Chillinghan, por exemplo, na fronteira entre Inglaterra e Escócia, a meio caminho dos dois territórios, se um dia se torna risível em portais de notícias como um dos lugares mais assombrados do mundo, é porque ainda ontem, ou centenas de anos atrás, como queira, foi palco de torturas de combatentes das duas nações, iniquidades contra as vítimas de sempre, pobres em geral, mulheres, crianças, soldados caídos em desgraça. Ou o palacete da ilha Fiscal, no Rio de Janeiro, que, depois do baile de 9 de novembro de 1889, 250 contos de réis gastos, quase uma tonelada de camarões, meia tonelada de perus e pouco menos que uma centena de faisões, revela sua natureza de palco para o tombo do imperador Pedro II, incidente que lhe machuca as ancas e que de quebra faz com que perca o império. Após o baile, o espólio: 37 lenços, 24 cartolas e chapéus de senhoras, treze coletes femininos, dezessete cintas-ligas, oito raminhos de corpete e militares com espadas em punho sobre seus cavalos brancos e pardos, assumindo o poder dali em diante, e, mesmo quando fora do poder, suas lâminas e armas de fogo sempre a postos, pairando ao longo dos tempos sobre a cabeça do povo. A ruína tem muitas configurações. Ademais, todo castelo guarda em si túmulo e prisão.
Iñe-e e o menino Juri são levados em comitiva a uma grande e compacta construção, o castelo em que mora aquele rei que encomendara aos cientistas todo um pedaço, um recorte de sua terra, o mesmo que lhes deu ordens e meios para saírem a saquear a terra alheia. Como que brotado do chão da cidade, o castelo se ergue denso, prepotente. Seus aposentos resplandecem ouro, rubis e uma longa história de conquistas e sangue. Nesse dezembro, a boa nova anunciada pelas inúmeras portas e janelas da casa do rei é menos o menino Jesus a ser celebrado em data próxima que essas outras crianças vindas da inaudita floresta, singulares, desconhecidas, anômalas em sua simplicidade.
A imensa construção parece aos olhos de Iñe-e um lugar que guarda muitas espécies de erro. Os brancos, presentes em todos os lugares, ora caminhando de um lado para o outro, ora paralisados em pedra muito polida e até mesmo em metal. Há ainda as gentes presas em quadros nas paredes e as que surgem ameaçadoras nos afrescos, brotando de paredes e teto. A lâmina translúcida dos espelhos a multiplicar os corpos avisa do perigo de lhes reter a alma. Tapetes, estofados, almofadas, o ruído dos saltos dos sapatos contra o piso, os poucos animais que transitam com alguma liberdade, cães e gatos, toda a solenidade daquele mundo guardando enorme risco.
Apartados de Martius e Spix, Iñe-e e o menino são conduzidos a um aposento sombrio por uma mulher de bochechas coradas e cabelo entre o branco e o amarelo. Ali, são limpos rapidamente com um pano áspero e úmido e têm suas roupas trocadas. Uma mulher os leva a uma cozinha e tenta fazer com que comam um mingau grosso e um tanto repugnante. Tanto Iñe-e quanto o menino Juri recusam o que lhes é oferecido. Estão enjoados. Depois de algum tempo de sossego e vigilância, são conduzidos à sala do trono, onde um ajuntamento de gente os olha com curiosidade ou ferocidade, Iñe-e não consegue distinguir o que os move exatamente. Mas lhe parece que todas aquelas pessoas se agregam em uma única e gigantesca cabeça de boca aberta a fazer um ruído que ela mesma não sabia até ali que pudesse ser feito por gente, articulando uma boca faminta por engolir a ela, ao menino, aos bichos e às plantas ali colocados em exibição. Uma boca ansiosa por saber deles a fibra e a consistência, e que, possuindo muitos e dessemelhantes olhos que variam de cor, ora azuis, ora verdes, e também escuros e amarelados, tem o poder de devassar todos os corpos, deixando à mostra estômagos, corações, tripas, sem, no entanto, devorá-los como deveriam. Só desperdício. Era um festejo bárbaro, e ela e os outros, o butim.
Ao contrário do menino, naturalmente curioso e vivaz, Iñe-e evita olhar os brancos diretamente. Espreita-os de soslaio, o suficiente para intuir quem são. Um homem de casaca negra berra algo para os cientistas, e é extremamente desagradável. De sua boca respinga cuspe, e seus dedos pegajosos como o caucho ora tocam a mão de Spix, ora tocam o ombro de Martius e, ao tocá-los, seus dedos se desmancham, elásticos, em uma calda grossa. Para seu horror, o homem se aproxima dela e, então, ela sente as mãos dele primeiro em seu cabelo, depois escorrendo para o queixo, abrindo sua boca, enquanto os olhos como uma luz maligna examinam-lhe os dentes. Relembra o dia no navio em que acordara com as mãos do capitão entre suas pernas. Depois o homem toca seus ombros, bate em suas costas e por fim lhe golpeia as pernas como se quisesse saber se são firmes. Essa coreografia de gestos ela já conhece e detesta, porque a machuca de muitas maneiras. Quando o homem termina de examiná-la e passa a investigar o menino, Iñe-e sente ainda o visgo dos seus dedos moles em cada lugar dela que ele tocou.
Quando finalmente o rei aparece, vem acompanhado da rainha e dos filhos. O rei tem o péssimo hábito dos brancos de deixar cabelo crescer na cara, o que a enoja. Talvez entre eles seja sinal de que é um grande chefe, mas, para ela, trata-se de um sintoma de fraqueza de caráter. A mulher tem olhos muito penetrantes, e acima deles suas sobrancelhas são como duas lagartas escuras que, embora muito próximas, parecem prestes a se arrastar em diferentes direções. Ela olha para Iñe-e com curiosidade, talvez algum horror, e diz algo ao ouvido do marido sem desviar os olhos da menina. Os filhos maiores também comentam coisas entre si e as filhas pequenas saltitam como macaquinhos. Logo cercam Iñe-e e o menino Juri, e Iñe-e pensa que, se tivesse, poderia lhes oferecer um punhado de tucumãs, que elas se afastariam aos pulos, contentes, satisfeitas. Toda aquela festa e ajuntamento de curiosidades a enfadam. O cansaço que sente tem o peso de muitos fardos.

Micheliny Verunschk, in O som do rugido da onça

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