quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Carro elétrico, El Paso

A sra. Snowden esperou que a minha avó e eu entrássemos no carro elétrico dela. Era igual a qualquer outro carro, salvo pelo fato de que era muito alto e curto, como um carro de desenho animado quando bate numa parede. Um carro de cabelo em pé. Mamie se sentou no banco da frente e eu no de trás.
Era como unhas arranhando um quadro-negro. As janelas estavam cobertas de uma camada de poeira amarela. As paredes e os bancos eram de veludo bolorento e empoeirado. Marrom-escuro. Eu roía muito as unhas nessa época, e a sensação do veludo mofado e poeirento nas pontas em carne viva dos meus dedos, nos meus cotovelos e joelhos esfolados era… uma agonia. Meus dentes doíam, meu cabelo doía. Eu estremecia como se tivesse tocado acidentalmente num gato morto de pelo duro. Dando um impulso, estiquei o corpo pra cima e me agarrei aos pinos dourados em forma de vasos de planta que ficavam em cima das janelas sujas. As alças que serviam para o passageiro se segurar estavam podres e desfiadas, balançando feito perucas velhas embaixo dos vasos de planta. Agarrada desse jeito aos pinos, eu ficava suspensa no ar, balançando acima dos bancos traseiros dos outros carros, onde eu via bolsas de compras, bebês brincando com cinzeiros, caixas de lenços de papel.
O carro fazia um ruído tão baixo, feito um zumbido, que nem parecia que estávamos saindo do lugar. Será que estávamos? A sra. Snowden não passava, talvez não pudesse passar, de vinte e cinco quilômetros por hora. Andávamos tão devagar que eu via as coisas de um jeito que nunca tinha visto antes. Via tudo ao longo do tempo, como se estivesse observando alguém dormir, a noite inteira. Um homem na calçada decidiu entrar num café, mudou de ideia, foi andando até a esquina, depois voltou e entrou, estendeu o guardanapo no colo e fez uma cara de expectativa, tudo isso antes que nós chegássemos ao fim do quarteirão.
Se eu abaixasse a cabeça, fazendo dela um banco de balanço embaixo dos meus braços pendurados, quando olhava para cima só o que eu via de Mamie e da sra. Snowden, tão pequeninas, eram os chapéus de palha, como se elas fossem apenas dois chapéus de palha pousados no painel. Eu ria histericamente toda vez que fazia isso. Mamie virava para trás e sorria como se não tivesse notado. Nós não estávamos nem no centro ainda, nem na Plaza.
Ela e a sra. Snowden estavam falando de amigas que tinham morrido ou que estavam doentes ou que tinham perdido o marido. Concluíam tudo o que diziam com uma citação da Bíblia.
Bom, eu acho que ela foi muito tola de…”
Ah, sim, misericórdia! E como foi. ‘Todavia, não o considereis como inimigo, mas procurai corrigi-lo como irmão.’”
Tessalonicenses Três!”, disse Mamie. Era uma espécie de jogo.
Por fim, eu não aguentei mais ficar pendurada nos vasos de planta e me deitei no chão. Borracha mofada. Poeira. Mamie virou para trás e sorriu. Misericórdia! A sra. Snowden parou o carro na beira da calçada. Elas acharam que eu tinha caído. Bem mais tarde, horas depois, fiquei com vontade de ir ao banheiro. Todos os banheiros limpos ficavam do outro lado da rua, o lado esquerdo. A sra. Snowden não podia fazer curvas à esquerda. Tivemos que fazer umas dez curvas à direita e percorrer uns dez quarteirões de ruas de mão única até chegar a um banheiro. Eu já tinha feito xixi na calça a essa altura, mas não disse nada para elas. Tomei a água fria da bica do posto Texaco. Levamos mais tempo ainda para voltar para o lado direito, porque tivemos que retornar até o viaduto da Wyoming Avenue.
Estava seco no aeroporto, carros entrando e saindo da pista de cascalho. Novelos de barrilha presos na cerca. Asfalto, metal, uma névoa poeirenta de átomos dançantes que se refletia, ofuscante, das asas e janelas dos aviões. Dentro dos carros à nossa volta, pessoas comiam coisas melequentas. Melancias, romãs, bananas machucadas. Garrafas de cerveja esguichavam nos tetos, espuma cascateava nas laterais dos carros. Eu queria chupar uma laranja. Estou com fome, choraminguei.
A sra. Snowden tinha previsto isso. Sua mão enluvada me passou biscoitos recheados embrulhados num lenço de papel sujo de talco. O biscoito se expandiu na minha boca como flores japonesas, como um travesseiro estourado. Eu engasguei e chorei. Mamie sorriu e me passou um lenço de pano cheio de pó de sachê, depois sussurrou para a sra. Snowden, que estava balançando a cabeça:
Não ligue… ela só está querendo chamar atenção.”
Pois o Senhor educa a quem ama.”
João?”
Hebreus, Onze.”
Alguns aviões decolaram e um pousou. Bem, é melhor tratarmos de voltar para casa. Ela não enxergava tão bem à noite, com os faróis e tudo o mais, então dirigiu mais devagar no caminho para casa, mantendo distância dos carros estacionados no meio-fio. Todos os motoristas de domingo estavam buzinando para nós. Eu me levantei do banco, apoiei as duas mãos no vidro de trás e, sustentando o corpo bem longe do veludo, fiquei vendo o colar de faróis emperrado atrás de nós até o aeroporto.
A polícia!”, gritei. Uma luz vermelha, uma sirene. A sra. Snowden ligou a seta e foi encostando lentamente para deixar o carro de polícia passar, mas ele parou do nosso lado. Ela abaixou a janela até o meio para ouvir o que o guarda tinha a dizer.
Senhora, os sinais estão ajustados para um fluxo de sessenta quilômetros por hora. Além disso, a senhora está dirigindo no meio da estrada.”
Sessenta é rápido demais.”
Se a senhora não aumentar a velocidade, eu vou ser obrigado a multá-la.”
Eles podem me contornar simplesmente.”
Minha querida, eles não ousariam!”
Ora!”
Ela acionou a janela elétrica na cara do guarda. Ele bateu na janela com o punho fechado, o rosto vermelho. Buzinas baliam atrás de nós, e as pessoas do carro logo atrás do nosso estavam rindo. Furioso, o guarda saiu pisando firme e entrou no carro de patrulha. Engatou a marcha e arrancou, a sirene aos brados enquanto ele ultrapassava um sinal vermelho, batia na traseira bronzeada de um Oldsmobile e depois batia de novo, na dianteira de uma picape. Vidros se estilhaçaram. A sra. Snowden abaixou sua janela. Seguiu adiante, contornando com cuidado a traseira da picape arrebentada.
Aquele que julga estar em pé tome cuidado para não cair.”
Coríntios!”, disse Mamie.

Lucia Berlin, in Manual da faxineira: Contos escolhidos

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